Second Anthropology
quinta-feira, 20 de novembro de 2014
segunda-feira, 7 de maio de 2012
De volta ao Brasil
Depois de um ano fora da terrinha, aqui estou de volta. Como avisei no post anterior, fui para Paris por um ano dedicar-me a outras atividades e temas, mas isso não impediu que, vez por outra, desse continuidade ao meu trabalho no SL, realizando alguns experimentos, com o objetivo de escrever meus artigos. Um deles já foi publicado este ano de 2012, em uma coletânea intitulada Juventudes e Gerações no Brasil Contemporâneo, organizada por Lívia Barbosa. O artigo se intitula "Os pequenos mundos gigantes: neotenia e transdução no Second Life". Para este artigo, fiz alguns experimentos na forma de machinimas que podem ser vistos abaixo. Contudo, a idéia do artigo fica melhor explicada nos videos "experiment # 19" e "experiment # 21":
experiment # 1:
experiment # 10:
experiment # 19:
experimento # 21:
segunda-feira, 24 de outubro de 2011
Notícias breves
Novamente peço desculpas pela ausência de postagens. Estou fora do Brasil fazendo um pós-doutorado, envolvida com outro tema de pesquisa. Apesar disso, não me afastei do Second Life. Ao contrário, toda oportunidade que tenho, aproveito para fazer minhas imersões e, assim, acompanhar as novidades e mudanças que estão ocorrrendo por lá. O que não tenho conseguido fazer, por falta de tempo é escrever muito a respeito. Mas a observação continua, atenta e cada vez mais interessada. Nos últimos tempos encontrei um bom caminho para poder dar forma às minhas idéias sobre o SL e, finalmente, escrevi um artigo que será publicado brevemente em português, e eu espero em inglês também. Outras iniciativas estão sendo feitas e elas serão noticiadas aqui. Abraços a todos e até breve!
quarta-feira, 27 de abril de 2011
A arte no horizonte do (im)provável e AM Radio
“Parece que uma das características fundamentais da arte contemporânea, e que pode ser analisada tanto de um ponto de vista ontológico como de uma perspectiva existencial, é a da provisoriedade do estético. Enquanto que, numa estética clássica, a tendência seria considerar o objeto artístico sub specie aeternitatis, a arte contemporânea, produzida no quadro de uma civilização eminentemente técnica em constante e vertiginosa transformação, parece ter incorporado o relativo e o transitório como dimensão mesma de seu ser”. (Campos, 1969:15)Neste post gostaria de prestar uma homenagem a um avatar muito especial: AM Radio. Refiro-me a um avatar artista que vem proporcionando momentos de imersão únicos no Second Life, nos quais entre tantos outros pensamentos, é possível refletir sobre as alternativas que ambientes como o SL oferecem à arte contemporânea. Infelizmente, para brasileiros que não freqüentam ou conhecem o Second Life, AM Radio continuará a ser um ilustre desconhecido, ao contrário do que ocorre em outros países onde ele é mais conhecido do público em geral, por causa das reportagens feitas sobre suas “instalações”, muitas delas mostradas em publicações importantes.
Nos últimos dias, no meio de vários emails recebidos, havia um enviado por ele dirigido ao seu grupo no Second Life, do qual meu avatar faz parte avisando que havia deixado um notecard importante. Assim que pude me conectei ao SL para tomar conhecimento do conteúdo da mensagem que, em poucas palavras, comunicava a sua decisão de “fechar” seus sims no prazo de seis meses. Após justificar brevemente as razões de sua decisão, o artista fazia um apelo: “Please feel free to continue to visit (them). Please encourage anyone you know who will miss the spaces to visit them with you. See my picks in my profile for landmarks”.
Não é preciso dizer que por alguns instantes lamentei sua decisão. Imediatamente fomos (eu e a avatar) até uma de suas instalações e enquanto fotografava passamos a rememorar algumas idéias que seu trabalho suscitara. Foi neste momento que o ensaio de Humberto de Campos veio à memória para lembrar as principais características presentes no trabalho de AM Radio: uma obra marcada pela estética do aleatório, do acaso, da idéia de precariedade e de brevidade.
Estamos falando de uma “obra” composta por cinco sims independentes, ou “instalações”, como preferirem. Em cada sim, um tema é sugerido como mote para provocar a reflexividade dos visitantes e fazê-los experimentarem/explorarem o ambiente. O aleatório não pode ser confundido com improviso. Ao contrário, a obra de AM Radio é extremamente precisa, o que não significa dizer que pretenda ser exaustiva, tampouco realista numa tentativa de oferecer um simulacro do mundo real. Sua precisão obedece outra lógica, qual seja a dos sonhos, onde o rigor da escolha se esconde sob a aparente aleatoriedade, acaso, precariedade e brevidade da paisagem e dos objetos, em alguns casos, até mesmo de certa desolação.
De todos os “artefatos” que vi com pretensões à obra de arte no Second Life, as instalações de AM Radio foram as que melhor traduziram para mim as palavras de Haroldo de Campos citadas na introdução deste post. Se existe uma busca pelo absoluto, ela não reside “...in the prims, the textures, or scripts. It was in your willingness to explore and experience the world in a way I tried to share it. My time in SL has been like having hundreds of people analyzing my dreams every morning. I have learned so much about many of you, but truly learned so much about myself” (AM Radio, Abril 2011).
Goodbye AM Radio! (Video 1)
I´ll miss your presence and dreams... (Video 2)
Palestra de AM Radio at Second Life (1)
Palestra de AM Radio at Second Life (2)
Palestra de AM Radio at Second Life (3)
Palestra de AM Radio at Second Life (4)
Palestra de AM Radio at Second Life (5)
sexta-feira, 11 de março de 2011
John Galliano e o Second Life
"A moda sai de moda, o estilo jamais".
"Sou contra a moda que não dure. É o meu lado masculino. Não consigo imaginar que se jogue uma roupa fora, só porque é primavera"... (Coco Chanel)
Impossível estar em Paris e não se ligar no affair em torno de John Galliano que, numa noite fria dessas, bêbado, falou demais e ofendeu pessoas. Aqui, o entendimento de todos é que sua demissão da Dior foi necessária para obrigar o "mundo da moda" a se enquadrar aos padrões mínimos de civilidade republicana, especialmente numa cidade como Paris, cuja população e circulação de estrangeiros é enorme. É a politização do consumo chegando em grande estilo ao mundo da moda, à indústria do luxo, um tema que eu e meus colegas pesquisadores do consumo vimos debatendo em nossos últimos encontros (ENEC). Para mim, impossível também não fazer uma relação entre Galliano e o Second Life. É irresistível!
Para quem não sabe, a moda é um segmento importante da economia deste mundo virtual e, muito provavelmente seja o business mais bem sucedido do SL, em termos de volume de lojas e vendas. Muitos residentes empreendedores tornaram-se fashionistas, alguns com lucros fabulosos, vivendo basicamente de simular e recriar (copiar) no SL, não apenas a moda real, seus estilos e tendências, mas, sobretudo, o “mundo da moda” com seus valores e ética.
O leitor curioso em ver um pouco o poder de fogo deste negócio da moda digital não precisa botar os pés no SL, basta acessar o Flickr, uma das plataformas mais usadas pelos residentes fashionistas para divulgarem suas produções de moda inworld. O interessante do Flickr é que ele remete o leitor aos blogs desses mesmos fashionistas – leitura obrigatória para se saber mais a respeito dos corações e mentes dos habitantes deste mundo.
O leitor concluirá rapidamente que, coincidência ou não, a “perspectiva eugênica” de John Galliano (que no mundo da moda não é apenas compartilhada por ele, diga-se de passagem) se encontra presente no Second Life, com a diferença de que ali, ela ainda não é tão poderosa como na RL, ainda não constitui o senso comum, pelo menos entre a grande maioria dos avatares residentes.
Assim, para quem deseja que o SL continue um espaço cosmopolita e de liberdade é importante ficar de olho no segmento fashionista do SL, pois eu mesma já escutei/li e vi modos de tratamento à la Galliano lá dentro, o que seria uma espécie de traição imperdoável aos valores de inovação, criatividade e inteligência que caracterizam os games e a própria rede.
Segue assim, que na condição de usuária e residente gostaria de destacar algumas coisas que vem me incomodando faz tempo no SL e que tem tudo a ver com este triste episódio racista estrelado por John Galliano.
Da obrigação moral de ser jovem
Não existem quase avatares maduros ou mesmo idosos no SL. A quantidade é ínfima. Por que? Na condição de mulher madura na RL sou bastante sensível à questão do envelhecimento, logo, este sempre foi um assunto que me mobilizou lá dentro, particularmente pela falta de opções para fazer/ter um avatar adequado à minha condição real. Em várias situações saí em busca de shapes & skins maduros e na grande maioria das vezes deparei-me com criações caricaturais, bizarras, através das quais se reafirmavam os estereótipos do envelhecimento, razão pela qual muitos residentes como eu, que não confundem maturidade, envelhecimento com senilidade ou mesmo decadência física/mental, acabavam desistindo de usá-las.
Eu pergunto: por que não existem shapes & skins de boa qualidade para avatares maduros à venda? Grande parte dos usuários do SL possuem mais de 30 anos, muitos estão na faixa dos 40 e mesmo dos 50 anos. Qual é o problema então? Partindo-se do princípio de que um avatar pode se apresentar com diferentes aparências, tal como o Auké (personagem de um mito indígena brasileiro), por que ele não compraria também shapes & skins mais próximas de sua idade real, de boa qualidade?
Será que à la Galliano a mensagem é que para se frequentar o Second Life é preciso ser "sempre jovem", ou então simular somente a juventude? Ora se for isso, estamos diante de uma forma de discriminação e de preconceito tão injusto ou irracional quanto outros, pois estamos alimentando o imaginário de que a única fase da vida digna de ser vivida é a juventude. Para mim, além de uma representação falsa da realidade, ela acaba caindo igualmente na caricatura, no estereótipo, além de contradizer totalmente o capitalismo naquilo que foi a sua maior vitória nos tempos modernos, qual seja, aumentar os limites reais da vida humana, que hoje chega a ser na ordem de 70-75 anos em média nos países mais desenvolvidos. Outro fato importante é que as pessoas mais maduras continuarão a ser ainda por algum tempo aqueles com maior poder de compra no planeta! Se a aposentadoria não está mais no horizonte do futuro dos mais jovens, lamento dizer, ela continua a fazer parte da vida dos mais maduros.
Da obrigação moral de ser belo
Todo mundo tem direito à beleza e ela precisa ser, de fato, mais democratizada e não ficar somente acessível aos mais ricos e às celebridades. Contudo, penso que a beleza, tal como a juventude não podem ser uniformizadas. Outro equívoco é pensar que a beleza pode ser comoditizada, vendida como produto. Beleza é construção, arte de viver, experiência e isso não se compra, mas se adquire vida afora. Pode parecer filosofia barata de botequim, mas esta é de longe a perspectiva mais bem sucedida, aquela que, literalmente, não leva as pessoas prematuramente ao túmulo.
Entretanto, nos últimos tempos tenho notado um retrocesso na oferta e o estímulo à diferença está diminuindo drasticamente. Fico pasma quando vejo os álbuns do Flickr e me deparo com avatares literalmente iguais uns aos outros, apesar das marcas diferentes de skins que aparecem nos créditos! Acho que as pessoas se esqueceram de uma regra importante do jogo que é a singularização do avatar. O valor da singularização vem sendo sacrificado em nome de uma uniformidade insuportável, da mesmice generalizada. Na minha geração (2007), havia uma idéia presente de elaboração e construção do avatar que prevalecia sobre o poder de compra, ou mesmo a facilidade de compra.
Da moda como obrigação
Quando entrei no SL eu gostava de vestir o meu avatar com roupas independentemente de elas estarem na moda ou não. Fundamentalmente, meu critério para comprar as peças era as referências estéticas utilizadas pelo criador, seu trabalho de pesquisa, seu estilo, design, as texturas usadas, enfim, o trabalho daquele criador e, evidentemente, se aquela peça combinava ou não com o meu avatar.
Com o desenvolvimento do fashionismo, muitas dessas lojas desapareceram ou se renderam à modinha suprimindo a criatividade ou a exclusividade do estilo de um criador em detrimento dos ditames dos imperadores da moda local, tal como acontece no mundo real, em função da concorrência e da necessidade de vender. Ou seja, de repente seu avatar está com uma calça ou um vestido que você/ele adoram e um amigo avatar chega e proclama que vocês estão fora de moda! Eu já ouvi isso algumas vezes, e num tom de reprovação, como se fosse uma falta grave que não pudesse cometer! Como assim? Eu visto aquilo que me der vontade e que julgo ficar bem no meu avatar, que considero fazer parte do estilo dele e ponto final! Não tenho obrigação nenhuma de estar na moda, muito menos no SL!
Há uma diferença entre roupa e moda. Há pessoas que gostam de roupas e outras que gostam de moda. Pessoas que gostam de roupas geralmente acabam exercendo mais a liberdade para encontrarem aquilo que lhes cai melhor. Em suma, novamente a regra importante do jogo está sendo infringida, aquela referente à construção ou à elaboração de uma personagem com um estilo próprio, singularizada. Quem só pensa em seguir a moda, não consegue construir um estilo próprio para seu avatar.
Do sentimento geral de inadequação
Não é preciso ser um especialista para entender imediatamente que o que está em jogo é a tentativa de se levar para o SL este sentimento básico de inadequação generalizado, tal como ele se desenvolveu na vida real, com as pessoas eternamente insatisfeitas consigo mesmas, vivendo eternamente o luto de si próprias, procrastinando sua criatividade e estilo pessoais em nome de resultados estéticos impossíveis.
Se é assim, gostaria de dizer que não foi esta a minha experiência com o SL até então. Ao contrário, até certo momento, ele me permitiu um auto-conhecimento em direção ao apuramento de meu estilo pessoal, ao me dar mais segurança, referências e, portanto, autonomia para buscar aquilo que realmente me agradava e me interessava genuinamente em termos de estilo. Uma das coisas mais interessantes que o SL me proporcionou foi o fato de que lá me libertei definitivamente da tutela da moda RL, porque comecei a fazer pesquisas e a levar a sério o meu próprio (bom) gosto e estilo pessoais através das relações com minha avatar. Enquanto a construía, pude exercitar tudo isso e por várias vezes tenho agradecido a ela por ter me libertado dos Gallianos da primeira e segunda vidas.
domingo, 20 de fevereiro de 2011
O sentimento do mundo
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
(Carlos Drummond de Andrade - O sentimento do mundo)
Ao contrário das redes sociais que exigem uma ética do comedimento nas relações, os mundos virtuais escapam disso, pela natureza mesma de sua tecnologia. Não por acaso, a expressão NO DRAMA PLEASE encontra-se presente em diferentes lugares do SL, em várias circunstâncias, na frágil tentativa de se evitar uma poluição maior através do transbordamento das emoções de seus residentes que parecem viver ali sempre à beira de um ataque de nervos. Se algumas classificações ainda fazem sentido, as redes sociais seriam mais apolíneas, enquanto mundos virtuais como o Second Life seriam mais dionisíacos, em função de suas potencialidades transgressoras e trágicas. Tudo isso para dizer que no SL continuamos a ser "filhos da dor", com um toque bizarro, é claro!
Um momento crucial de minha pesquisa de campo foi aquele em que um vizinho avatar colocou-me diante do seu luto, obrigando-me a encarar o meu próprio luto pela doença/perda de uma irmã. Eu já havia pressentido que havia uma afinidade grande entre o SL, o (meu) luto e a (minha) melancolia pessoais, mas não havia querido aprofundar a questão para não comprometer a relativa objetividade diante da pesquisa. Contudo, ao encontrar este vizinho, não pude mais ignorar o fato, sob o risco de minha cegueira vir a comprometer o meu próprio investimento intelectual.
Ele havia alugado um terreno em frente ao meu, em um condomínio e pôs-se a construir sua casa, prim a prim, meticulosamente, tendo levado vários dias na operação. Passei então a observá-lo com curiosidade, até porque sempre me interessara pela criação de objetos no SL.
Para começar, como de praxe – e todo mundo faz isso – consultei imediatamente seu profile. Na primeira aba, chamou-me atenção o aviso logo abaixo da foto de seu avatar, dizendo que não buscava relacionamentos, leia-se, envolvimentos amorosos. Ele dizia que seu interesse era apenas fazer amizades e se divertir um pouco, o que, diga-se de passagem é uma fórmula (protetora) bastante usada nos perfis para afastar incautos e usuários inconvenientes.
Depois de uma consulta dos grupos aos quais o vizinho estava filiado fui direto para a última aba, aquela em que o avatar fala de sua RL. Para minha surpresa havia a foto de uma van parada numa espécie de estacionamento. Abaixo da foto, o avatar informava que era male, 34, single, straight, USA e morava naquele carro. Não gostasse eu de filmes de suspense e séries de TV, comecei a dar tratos à bola, quanto mais observava a casa que havia tomado forma a partir dos prims lançados no terreno. Ela não combinava com o que estava exposto no profile do avatar.
A primeira coisa a ser destacada era o capricho e a familiaridade que ele parecia ter com as ferramentas de construção do programa. A casa que surgia à minha frente era uma “casa de madeira”, estilo rústico, espaçosa. As texturas usadas para as paredes e o piso eram muito boas, estavam muito bem aplicadas e realmente simulavam uma construção rural, de madeira, sólida, com dois andares e todos os cômodos, bem equipados com mobiliário apropriado. Mas o que me chamava atenção eram os detalhes da decoração que, para uma mulher não passavam despercebidos, como móveis, estantes, jarros com flores, tapetes, quadros e cortinas. Havia ainda o detalhe de uma cozinha e banheiro completos, com todos os apetrechos, panelas, louças e até refeições nas mesas.
Mas o vizinho não parou por aí, porque ao terminar a casa, a surpresa seguinte foi o que aconteceu com o terreno em torno dela, onde um jardim surgiu cheio de plantas, árvores, flores, lago, cachoeira, detalhes que me fizeram ficar imaginando coisas.... Seria, afinal, o dono do avatar vizinho, uma mulher? Mas que tipo de mulher exatamente?
Finalmente, passados alguns dias, com tudo pronto, meu vizinho ou vizinha apareceu em sua casa na companhia de uma bela avatar feminina e, de repente a casa se encheu de bolinhas azuis e rosas... Apesar da evidência de que ambos os avatares estavam se divertindo, alguma coisa me soava sombria e inquietante... Lembrei-me de Janela Indiscreta de Hitchcock e naquela época, estava assistindo à oitava temporada de CSI Las Vegas que girava em torno de um serial killer que fazia miniaturas perfeitas de seus crimes, como forma de anunciá-los à polícia... Entrei em parafuso... Minha imaginação começou a prever manchetes do tipo “serial killer atrai vítimas pela internet, através do Second Life!”.
Decidi então esclarecer a situação e me apresentei ao vizinho para pedir-lhe ajuda, após ter providenciado um falso acidente com a minha casa. Obviamente que o vizinho já me conhecia à distância pelos mesmos métodos que eu o conhecera, ou seja, pela câmera indiscreta, lera meu perfil, o que dispensava as apresentações do tipo quem é você, como se chama etc. Como eu, ele parecia ter dúvidas sobre meu sexo real, e pediu para falar comigo no voice. Ficou alegremente surpreso quando constatou que minha voz era feminina e, evidentemente eu também gostei de saber que estava falando com um homem!
Para encurtar a história, ele foi gentil e me ajudou. Seu avatar foi ao meu terreno e ajudou a botar minha casa novamente em pé, depois me deu uma aula memorável sobre como resolver aquele problema simples quando um avatar inexperiente manda suas construções para o espaço. Perguntei a ele se era builder (construtor), disse que não, mas entendia de construção na RL e gostava muito de jogos de computador, era como passava o seu tempo ocioso.
Em dado momento, tomei coragem e perguntei por que morava numa van na RL e o que buscava no SL. Sem titubear ele respondeu: “Estou no SL porque é o único lugar onde posso viver meu luto em paz”. Havia perdido a família cerca de dois anos antes, digo sua mulher e dois filhos pequenos em um acidente de carro terrível. Durante algum tempo a dor o deixou simplesmente paralisado. A única coisa que o mantivera vivo eram as lembranças da família perdida que passou a memorizar obsessivamente. Ele me disse que sua obsessão consistia em memorizar cenas, seqüências inteiras de situações que vivera com sua mulher e filhos, como se fosse um filme, já que não conseguia fazer nada, sequer sair do lugar, pois estava em estado de choque.
Algum tempo depois decidiu abandonar tudo: a casa, a cidade onde morava e passou a viver na van. Perambulava por diferentes cidades, parava aqui e ali, fazendo pequenos serviços e seguia em frente. Esta era a situação em que se encontrava no momento em que o conheci. Entre uma parada e outra, estava sempre conectado através de seu laptop, no SL e em outros games. Em alguns minutos de conversa meu vizinho me fez entender que o SL possuía grandes conexões com a morte, o luto e a dor.
Olhei então para a casa de madeira à minha frente e entendi finalmente o que se passava. No auge de sua dor, ele passou a memorizar em todos os detalhes a vida familiar na casa onde vivera com sua família. Mais adiante, em suas andanças ele passou a atualizar suas lembranças na forma de registros mnemônicos usando uma plataforma 3D. A atitude meticulosa, quase ritualística no modo como fizera sua casa fazia agora todo sentido para mim e este fato me fez lembrar imediatamente do livro, O Palácio da Memória de Matteo Ricci, escrito por Jonathan D. Spence. Meu vizinho sem saber estava botando em prática a velha história que Matteo Ricci contou tantas vezes aos chineses que tentou catequizar:
“Há muito tempo, um poeta grego, o nobre Xi-mo-ni-de (Simônides), reuniu-se com seus parentes e amigos numa festa em seu palácio. Quando saiu por um momento para tomar ar no jardim, o grande salão desmoronou. Todos os convidados foram esmagados e seus corpos ficaram dilacerados e desfigurados. Xi-mo-ni-des (Simônides), porém, conseguiu se lembrar da ordem exata em que estavam sentados seus parentes e amigos, e quando ele os recordou um por um, seus corpos puderam ser identificados (e enterrados). Aí podemos ver o nascimento do método mnemotécnico que foi transmitido às épocas posteriores”.
Em minhas primeiras incursões ao SL, o livro de Spencer já havia me ocorrido como uma referência importante. Na minha perspectiva ainda exploratória e titubeante deste mundo virtual, entrevi que estava diante de uma versão digital dos “palácios de memória” construídos por Matteo Ricci, o jesuíta. Neste dia em que conversei com meu vizinho tive certeza de que a intuição não era apenas correta, como ela vinha acompanhada de uma implicação suplementar a ser considerada: os “palácios de memória” do SL não seriam apenas um suporte ou modo de arranjar, ordenar e classificar os objetos existentes naquele mundo e, junto com eles, informação e/ou conhecimento, mas cada objeto era ele próprio parte da memória afetiva de seu criador, eventualmente acrescidos da memória afetiva de seus novos proprietários, à medida que circulavam pelo SL, através das cópias. Aquela casa de madeira encerrava o luto de uma pessoa com uma história de vida e lembranças únicas. Ela não era apenas um objeto técnico digital, um bem de consumo imaterial, mas como o próprio avatar de meu vizinho, ela encerrava suas memórias e afetos mais profundos, em suma, o seu sentimento do mundo.
domingo, 26 de dezembro de 2010
Orgulho e Preconceito
"Não é pelo fato de julgarmos uma coisa boa, que nos esforçamos por ela, que a queremos e a desejamos, mas, ao contrário, é pelo fato de nos esforçarmos por ela, por querê-la, por desejá-la, que a julgamos boa". Espinoza, Ética, parte 3, prop. 9.
“Você é as suas sinapses, e elas são o que você é” (Joseph LeDoux, neurocientista)
Pride and Prejudice de Jane Austen é um dos romances mais lidos do mundo. Escrito ainda no final do século XVIII ele narra as vicissitudes e empenho da jovem Elizabeth Bennet, filha de um proprietário rural inglês, às voltas com seu projeto de construir para si uma “vida feliz”, tendo que lidar com as limitações morais, culturais, com a educação e os costumes de seu tempo. Sob vários aspectos, o título e o enredo do livro se aplicam muito bem ao que pretendo desenvolver neste último post de 2010.
Até o século XVIII o gênero romance foi considerado inferior no mundo ocidental. Mais ainda, ele era apontado pelas “autoridades” (leia-se todos aqueles a quem era dada a prerrogativa de enunciar as verdades sobre o mundo) como um hábito feminino próximo do vício, moralmente condenável, uma vez que desviava a atenção das mulheres de suas "verdadeiras" funções sociais. Foi preciso um escritor do calibre de Gustave Flaubert para criar um caso com essas mesmas autoridades (clero, educadores, médicos, moralistas de plantão etc) e mudar definitivamente os rumos dos acontecimentos.
A principal arma usada por Flaubert foi ele próprio escrever um romance, Madame Bovary, no qual o “desejo” (uma categoria cara aos psicanalistas) encarnado na figura de sua personagem principal (Ema Bovary) é apresentado desde já como sendo o eixo fundamental para o entendimento do indivíduo moderno, provocando assim o maior escândalo literário da sociedade francesa. Por quê? Ema com seu jeito gauche de ser, e apesar de seu final trágico, já era definitivamente uma mulher dos tempos modernos. Para o bem e/ou para o mal, ela é o protótipo do consumidor moderno, com todo o seu hedonismo, vícios e virtudes.
Neste romance, Flaubert mostra também que o consumidor moderno se distingue do consumidor tradicional, exatamente pela busca incessante desta qualidade da experiência – o prazer elusivo – que as coisas e os objetos possuem, diferentemente da satisfação imediata obtida pelos sentidos (Campbell, 1988). Não por acaso, o livro de Flaubert, publicado em 1857 é considerado o primeiro romance realista. Seja como for, apesar do processo e julgamento que enfrentou, a partir de sua personagem Ema ("Emma Bovary c'est moi"), não houve mais dúvida acerca da legitimidade literária do gênero romance. De fato, desde então, este gênero deixou de ser percebido como um mero passatempo feminino de obtenção de prazer conspícuo, tornando-se parte integrante da cultura erudita ocidental.
Quando li estes dois romances pela primeira vez eu era ainda muito jovem e a leitura de ambos foi fundamental para a minha formação, para minhas escolhas a respeito de dois aspectos essenciais de minha vida adulta. A primeira delas foi quanto ao quesito profissão: eu descobri que realmente gostava muito de ler e escrever, e que era totalmente dependente deste objeto chamado “livro”. Então eu soube, desde então, que estaria fadada a escolher algo no qual leitura e escrita, não apenas estivessem presentes, mas fossem obrigatórias!
A segunda escolha, corolário da primeira, é que evidentemente não poderia viver entre pessoas que não apreciassem ou valorizassem meu gosto pela leitura e a escrita, logo a questão do casamento, por exemplo, das amizades e sociabilidade passou a ser um problema na minha vida, embora não desejasse ficar solteira ou solitária. Felizmente posso dizer que tive muita sorte em minha vida, o que não elimina de modo algum as dificuldades e os preconceitos que tive de enfrentar.
Poderia estender essas considerações ao cinema e à televisão também. Lembrar que em suas origens ambos possuiam má fama e estavam relacionados às mulheres e pessoas de caráter duvidoso ou alienadas, até terem sido escolhidos pelo governo norte-americano para promoverem a cultura de massas e a assimilação de milhões de imigrantes que deveriam ser integrados àquela nação. Para muitos estudiosos do cinema, não foi por acaso que Hollywood se tornou a base da mais importante indústria dos EUA, aquela através da qual eles vêm exercendo de modo mais eficaz sua influência cultural no mundo contemporâneo.
Finalmente, chego ao ponto onde queria chegar. Eu falei aqui de romance (literatura), consumo, cinema e, evidentemente podemos juntar a esta lista a própria rede, a internet. A cada dia que passa fica mais difícil para cada um de nós delimitarmos as fronteiras entre on/off line, na mesma proporção que cada vez menos dependemos de suportes físicos como os antigos PC´s. Hoje, a quantidade de dispositivos e objetos que nos garantem a conectividade imediata é uma evidência empírica incontestável de que “algo” mudou profundamente e continuará mudando em relação à nossa condição de sujeitos.
As conseqüências deste fato são ao mesmo tempo drásticas e dramáticas, especialmente para áreas e domínios inteiros da vida social que fundaram e validaram seus poderes e formas de autoridade a partir da noção cartesiana de sujeito. Quero dizer com isso, que os próximos anos nos reservam grandes controvérsias a respeito da cultura digital. Um exemplo são as inúmeras pesquisas cujos resultados comprovam de forma constrangedora que não existe muito consenso em relação a vários aspectos dela. Ainda recentemente, o episódio Wikileaks demonstrou cabalmente que estamos navegando perigosamente em águas turvas, sob a ameaça de tempestades como controle, censura e criminalização.
O pior de tudo é que elas podem desabar por aqui em nossa democracia sempre tão relativa e precária. E tudo indica que um dos alvos privilegiados seja também a nossa participação nos “mundos virtuais”. Sempre achei estranho o fato de “a morte do Second Life” ter sido anunciada inúmeras vezes pela nossa mídia, a despeito de seu desenvolvimento tecnológico e crescimento econômico. No momento atual começo a perceber que o discurso da “morte” começa a ser substituído por outro bem mais problemático, desta vez apoiado no discurso médico do “vício” e da drogadição. O interessante é que um dos argumentos apresentados diz respeito ao aumento da dopamina nos usuários durante sua imersão. Ora bolas, eu poderia aqui listar várias outras atividades que mobilizam nossos sentidos, emoções e subjetividades provocando os mesmos efeitos de aumento de nossos neurotransmissores e sinapses!
Poderia citar muitos exemplos, mas creio que o argumento de que o simples aumento de uma substância no organismo não caracteriza o "vício" seja suficiente neste momento, tornando-se necessário considerar as circunstâncias sociais e culturais nas quais este aumento ocorre e os próprios indivíduos em pauta. No caso dos mundos virtuais seria preciso conhecer ainda muitas outras dimensões da vida do usuário para pensarmos nesta possibilidade, especialmente saber se ele possui ou desenvolve atividades produtivas ou criativas especiais envolvendo formas de recompensas em termos de reconhecimento, prestígio ou mesmo financeira naquele ambiente. A meu ver, esta perspectiva da drogadição precisa ser considerada com muita reserva, porque corre o risco de não explicar nada e apenas corroborar a consolidação de mais um preconceito que visa a construção de uma fronteira moral e ideológica que provavelmente esconde interesses corporativos e institucionais (políticos) bem reais.
Deixo aqui, portanto, meu registro contra esta visão ligeira e que nada contribui para esclarecer o que são os mundos virtuais e os modos de interação que eles instituem. Aproveito para evocar uma cena significativa do belo filme de Laís Bodanzky, Bicho de sete cabeças, uma história sensível e realista sobre uma receita doméstica rápida e cruel de como produzir um doente mental em uma sociedade com viés autoritário como a nossa, por uma instituição psiquiátrica, muita droga (a droga dos laboratórios) e a ignorância de uma família.
Obs. final: seria importante que as "autoridades" e a mídia se informassem melhor sobre esta controvérsia dos jogos como drogadição. Segue novamente um link de Bruno Latour a respeito.
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