domingo, 20 de fevereiro de 2011

O sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
(Carlos Drummond de Andrade - O sentimento do mundo)

Ao contrário das redes sociais que exigem uma ética do comedimento nas relações, os mundos virtuais escapam disso, pela natureza mesma de sua tecnologia. Não por acaso, a expressão NO DRAMA PLEASE encontra-se presente em diferentes lugares do SL, em várias circunstâncias, na frágil tentativa de se evitar uma poluição maior através do transbordamento das emoções de seus residentes que parecem viver ali sempre à beira de um ataque de nervos. Se algumas classificações ainda fazem sentido, as redes sociais seriam mais apolíneas, enquanto mundos virtuais como o Second Life seriam mais dionisíacos, em função de suas potencialidades transgressoras e trágicas. Tudo isso para dizer que no SL continuamos a ser "filhos da dor", com um toque bizarro, é claro!

Um momento crucial de minha pesquisa de campo foi aquele em que um vizinho avatar colocou-me diante do seu luto, obrigando-me a encarar o meu próprio luto pela doença/perda de uma irmã. Eu já havia pressentido que havia uma afinidade grande entre o SL, o (meu) luto e a (minha) melancolia pessoais, mas não havia querido aprofundar a questão para não comprometer a relativa objetividade diante da pesquisa. Contudo, ao encontrar este vizinho, não pude mais ignorar o fato, sob o risco de minha cegueira vir a comprometer o meu próprio investimento intelectual.

Ele havia alugado um terreno em frente ao meu, em um condomínio e pôs-se a construir sua casa, prim a prim, meticulosamente, tendo levado vários dias na operação. Passei então a observá-lo com curiosidade, até porque sempre me interessara pela criação de objetos no SL.

Para começar, como de praxe – e todo mundo faz isso – consultei imediatamente seu profile. Na primeira aba, chamou-me atenção o aviso logo abaixo da foto de seu avatar, dizendo que não buscava relacionamentos, leia-se, envolvimentos amorosos. Ele dizia que seu interesse era apenas fazer amizades e se divertir um pouco, o que, diga-se de passagem é uma fórmula (protetora) bastante usada nos perfis para afastar incautos e usuários inconvenientes.

Depois de uma consulta dos grupos aos quais o vizinho estava filiado fui direto para a última aba, aquela em que o avatar fala de sua RL. Para minha surpresa havia a foto de uma van parada numa espécie de estacionamento. Abaixo da foto, o avatar informava que era male, 34, single, straight, USA e morava naquele carro. Não gostasse eu de filmes de suspense e séries de TV, comecei a dar tratos à bola, quanto mais observava a casa que havia tomado forma a partir dos prims lançados no terreno. Ela não combinava com o que estava exposto no profile do avatar.

A primeira coisa a ser destacada era o capricho e a familiaridade que ele parecia ter com as ferramentas de construção do programa. A casa que surgia à minha frente era uma “casa de madeira”, estilo rústico, espaçosa. As texturas usadas para as paredes e o piso eram muito boas, estavam muito bem aplicadas e realmente simulavam uma construção rural, de madeira, sólida, com dois andares e todos os cômodos, bem equipados com mobiliário apropriado. Mas o que me chamava atenção eram os detalhes da decoração que, para uma mulher não passavam despercebidos, como móveis, estantes, jarros com flores, tapetes, quadros e cortinas. Havia ainda o detalhe de uma cozinha e banheiro completos, com todos os apetrechos, panelas, louças e até refeições nas mesas.

Mas o vizinho não parou por aí, porque ao terminar a casa, a surpresa seguinte foi o que aconteceu com o terreno em torno dela, onde um jardim surgiu cheio de plantas, árvores, flores, lago, cachoeira, detalhes que me fizeram ficar imaginando coisas.... Seria, afinal, o dono do avatar vizinho, uma mulher? Mas que tipo de mulher exatamente?

Finalmente, passados alguns dias, com tudo pronto, meu vizinho ou vizinha apareceu em sua casa na companhia de uma bela avatar feminina e, de repente a casa se encheu de bolinhas azuis e rosas... Apesar da evidência de que ambos os avatares estavam se divertindo, alguma coisa me soava sombria e inquietante... Lembrei-me de Janela Indiscreta de Hitchcock e naquela época, estava assistindo à oitava temporada de CSI Las Vegas que girava em torno de um serial killer que fazia miniaturas perfeitas de seus crimes, como forma de anunciá-los à polícia... Entrei em parafuso... Minha imaginação começou a prever manchetes do tipo “serial killer atrai vítimas pela internet, através do Second Life!”.

Decidi então esclarecer a situação e me apresentei ao vizinho para pedir-lhe ajuda, após ter providenciado um falso acidente com a minha casa. Obviamente que o vizinho já me conhecia à distância pelos mesmos métodos que eu o conhecera, ou seja, pela câmera indiscreta, lera meu perfil, o que dispensava as apresentações do tipo quem é você, como se chama etc. Como eu, ele parecia ter dúvidas sobre meu sexo real, e pediu para falar comigo no voice. Ficou alegremente surpreso quando constatou que minha voz era feminina e, evidentemente eu também gostei de saber que estava falando com um homem!

Para encurtar a história, ele foi gentil e me ajudou. Seu avatar foi ao meu terreno e ajudou a botar minha casa novamente em pé, depois me deu uma aula memorável sobre como resolver aquele problema simples quando um avatar inexperiente manda suas construções para o espaço. Perguntei a ele se era builder (construtor), disse que não, mas entendia de construção na RL e gostava muito de jogos de computador, era como passava o seu tempo ocioso.

Em dado momento, tomei coragem e perguntei por que morava numa van na RL e o que buscava no SL. Sem titubear ele respondeu: “Estou no SL porque é o único lugar onde posso viver meu luto em paz”. Havia perdido a família cerca de dois anos antes, digo sua mulher e dois filhos pequenos em um acidente de carro terrível. Durante algum tempo a dor o deixou simplesmente paralisado. A única coisa que o mantivera vivo eram as lembranças da família perdida que passou a memorizar obsessivamente. Ele me disse que sua obsessão consistia em memorizar cenas, seqüências inteiras de situações que vivera com sua mulher e filhos, como se fosse um filme, já que não conseguia fazer nada, sequer sair do lugar, pois estava em estado de choque.

Algum tempo depois decidiu abandonar tudo: a casa, a cidade onde morava e passou a viver na van. Perambulava por diferentes cidades, parava aqui e ali, fazendo pequenos serviços e seguia em frente. Esta era a situação em que se encontrava no momento em que o conheci. Entre uma parada e outra, estava sempre conectado através de seu laptop, no SL e em outros games. Em alguns minutos de conversa meu vizinho me fez entender que o SL possuía grandes conexões com a morte, o luto e a dor.

Olhei então para a casa de madeira à minha frente e entendi finalmente o que se passava. No auge de sua dor, ele passou a memorizar em todos os detalhes a vida familiar na casa onde vivera com sua família. Mais adiante, em suas andanças ele passou a atualizar suas lembranças na forma de registros mnemônicos usando uma plataforma 3D. A atitude meticulosa, quase ritualística no modo como fizera sua casa fazia agora todo sentido para mim e este fato me fez lembrar imediatamente do livro, O Palácio da Memória de Matteo Ricci, escrito por Jonathan D. Spence. Meu vizinho sem saber estava botando em prática a velha história que Matteo Ricci contou tantas vezes aos chineses que tentou catequizar:

“Há muito tempo, um poeta grego, o nobre Xi-mo-ni-de (Simônides), reuniu-se com seus parentes e amigos numa festa em seu palácio. Quando saiu por um momento para tomar ar no jardim, o grande salão desmoronou. Todos os convidados foram esmagados e seus corpos ficaram dilacerados e desfigurados. Xi-mo-ni-des (Simônides), porém, conseguiu se lembrar da ordem exata em que estavam sentados seus parentes e amigos, e quando ele os recordou um por um, seus corpos puderam ser identificados (e enterrados). Aí podemos ver o nascimento do método mnemotécnico que foi transmitido às épocas posteriores”.

Em minhas primeiras incursões ao SL, o livro de Spencer já havia me ocorrido como uma referência importante. Na minha perspectiva ainda exploratória e titubeante deste mundo virtual, entrevi que estava diante de uma versão digital dos “palácios de memória” construídos por Matteo Ricci, o jesuíta. Neste dia em que conversei com meu vizinho tive certeza de que a intuição não era apenas correta, como ela vinha acompanhada de uma implicação suplementar a ser considerada: os “palácios de memória” do SL não seriam apenas um suporte ou modo de arranjar, ordenar e classificar os objetos existentes naquele mundo e, junto com eles, informação e/ou conhecimento, mas cada objeto era ele próprio parte da memória afetiva de seu criador, eventualmente acrescidos da memória afetiva de seus novos proprietários, à medida que circulavam pelo SL, através das cópias. Aquela casa de madeira encerrava o luto de uma pessoa com uma história de vida e lembranças únicas. Ela não era apenas um objeto técnico digital, um bem de consumo imaterial, mas como o próprio avatar de meu vizinho, ela encerrava suas memórias e afetos mais profundos, em suma, o seu sentimento do mundo.