Durante meses seguidos fiz meu trabalho de campo no Second Life em minha casa, logando de “meu escritório”, de “meu desktop”, sentada em “minha cadeira/mesa”, tendo “minha estante de livros” à frente e a “janela com a minha vista” ao lado. Quero dizer com isso que em todo este tempo meus deslocamentos para o “outro lado da tela” foram feitos comigo partindo de um mesmo ponto, de um mesmo lugar, “meu ponto”, para falar nos termos de Castañeda, cercada por objetos com os quais tenho uma relação de familiaridade e intimidade.
Tudo isso ficou ameaçado há poucos dias atrás, quando tive de me afastar de meu ambiente familiar, para passar um tempo fora, morar em outro lugar, em outra cidade, em outro país. Sucedeu que a partir de então, minhas conexões e imersões ficaram incertas e a familiaridade adquirida com minha segunda vida deu lugar a um estranhamento de certo modo inesperado.
Diante deste obstáculo, passei a refletir sobre suas causas. Que fique claro, não houve e não tenho nenhum problema técnico que me impeça de conectar e entrar no SL. Em meu novo ambiente de moradia disponho de todas as comodidades e condições objetivas para tal. Portanto, não estou me referindo a um obstáculo de ordem operacional ou tecnológica, mas a algo que remete às velhas discussões epistemológicas, em torno dos conceitos de tempo e espaço.
Embora já houvesse constatado que as imersões não são idênticas, não se repetem jamais, mesmo quando feitas seguida e continuamente, e nas mesmas condições; embora já houvesse constatado que cada imersão é uma experiência em si mesma, inteira, fazendo com que cada uma seja um instante único, irredutível a qualquer outra, sem garantias de continuidade alguma com quaisquer outras imersões anteriores ou posteriores, eu acreditava que esta diferença se devia unicamente à dimensão temporal. Na verdade, foram estas experiências que me conduziram às idéias de Bachelard, de seu conceito de instante e sua afirmação da descontinuidade do tempo em oposição à duração bergsoniana.
Meu pressuposto era então o de que as imersões configuravam uma série processual, descontínua, cabendo ao esforço e à imaginação poética dos usuários-residentes fazer ou tornar “sua série” de imersões algo mais ou menos contínua, de acordo com suas necessidades, interesses e projetos, como uma montagem fílmica.
Mais ainda, parecia-me que, paralelamente, a relação/interação com o avatar seguia sendo também uma relação processual, descontínua, nos mesmos termos, já que a cada imersão, tínhamos um instante único em que eu e meu corpo biológico, meu avatar e os demais, conformavam assim um evento igualmente singular que findava tão logo a imersão terminava. Isso me fez pensar que a relação do usuário-residente com seu avatar é basicamente fundada na diferença e orientada por ela, mesmo quando os primeiros se empenham em transformá-la numa relação de identidade, com o objetivo de aproximá-la de suas vidas reais.
Pois bem, mas se tomando pelo ângulo do tempo, posso argumentar que cada imersão é única e que independentemente de sua duração constitui também um instante único da/na relação do usuário com seu avatar, eu não havia pensado na dimensão espacial do problema, pelo menos cogitado que sua variação ou mudança pudesse me colocar algum obstáculo.
Foi preciso eu ter me deslocado na vida real, ao mesmo tempo em que pretendia manter minha rotina de imersões, para o problema vir à tona. Minha sorte foi que diante do meu desconforto eu me lembrei imediatamente de uma citação de Alain Badiou (1994): "não se pensa da mesma forma em todos os lugares". Ato contínuo comecei a rememorar todos os procedimentos que costumo por em ação no meu ambiente familiar antes de me conectar, incluindo meus hábitos de pensamento e me dei conta de que eles não me ocorrem em minha nova condição, simplesmente porque aqui eles não fazem muito sentido e estão de certo modo suspensos diante da nova situação em que me encontro.
Segundo Badiou, o que “somos” depende do lugar onde estamos, dos objetos que nele existem, das relações entre eles. Assim sendo, o fato mesmo de ter saído do lugar familiar para outro que me é ainda totalmente estranho, no qual, inclusive sou uma estrangeira, de fato, coloca em risco toda a familiaridade anteriormente construída com meus objetos virtuais.
Percebo assim que minha nova condição espacial me impôs um obstáculo. Como disse, tecnicamente falando está tudo perfeito. O protocolo é o mesmo e ele está funcionando aqui tão bem quanto lá. O problema se apresenta quando me deparo com a avatar e o ambiente do outro lado da tela. Ficou evidente para mim que a “estabilidade” ou a relativa continuidade de meu campo na “segunda vida”, ou o nome que queiramos dar a qualquer coisa deste tipo, supôs que um dos termos da relação, no caso em questão, eu, usuário-residente se conectasse de um mesmo ponto fixo, em um ambiente que me é familiar.
É possível que muitos residentes não tenham se dado conta deste problema ou sequer o experimentado nestes termos. É importante verificar isso, caso a caso, mas pelo que já li a respeito em vários fóruns, identifico aqui as mesmas suscetibilidades de gamers em relação aos atropelos, imprevistos ou mesmo mudanças abruptas em suas condições espaciais de conexão. O lugar de onde se conecta, a máquina, a tela, o mouse, o teclado, a posição da mesa no recinto ou em relação aos pontos cardeais, se orientado para o norte/sul, leste/oeste, tudo passa a fazer uma enorme diferença para se fazer/ter uma boa imersão.
Diante dessa (re)descoberta repentina do espaço, comecei a ler o livro de Doreen Massey (Pelo Espaço. Uma nova política da espacialidade). Logo no início a autora propõe duas coisas que me pareceram fundamentais, especialmente para cientistas sociais, antropólogos e muito particularmente para quem, como eu, está investigando mundos virtuais: a primeira, é que o espaço não pode ser mais pensado como um resíduo do tempo, ou subsumido a ele; a segunda é que apesar da longa história a respeito, devemos parar de associar o espaço somente com a representação, com a fixação do significado (cap. 2).
Como geógrafa, um dos objetivos de Massey em seu livro é “liberar” o espaço dessas camisas de força que o associa de longa data a fechamento (vide a noção de contexto, enquadramento etc, tão caros às ciências sociais) e estase, ou à ciência, escritura, texto e representação e que, segundo ela “quase o sufocaram até a morte, para situá-lo em outras cadeias de significado ...ao lado de abertura, heterogeneidade, diferença e mudança ... e onde ele possa ter uma vida nova e mais produtiva”. (Massey, 2008:42).
Fiquei pensando em como finalizar este post depois deste desabafo etnográfico. Recorri às minhas fontes e encontrei esta machinima que bem pode simbolizar essa relação de poder e autoridade que o tempo tem exercido sobre o espaço em nossas filosofias, da mesma forma que as tentativas deste último em se impor ou mesmo superar o primeiro. As imagens são belas, fortes e mostram muito claramente o quanto a imaginação poética associada à tecnologia pode nos sugerir algumas alternativas interessantes para velhos problemas epistemológicos. As imagens são de Lainy Voom.