Casa Grande & Senzala foi um dos livros que li em minha juventude e que me fizeram desejar estudar ciências sociais. Foi através dele que aprendi a olhar meu país de uma forma diferente, conferindo a ele um lugar singular no concerto das nações.
Fundamentalmente, Gilberto Freyre me mostrou que o dilema brasileiro não consiste em nenhuma "inadequação" atávica de nossa sociedade em face da modernidade, mas muito mais na recusa em abrir mão de princípios que orientaram a nossa fundação enquanto tal. Se, por conta disso, o Brasil veio a se tornar uma espécie de "caricatura" da modernidade, devo dizer que caricatura não significa algo necessariamente negativo, podendo ser também uma forma de crítica, de contra-discurso.
Em suma, minha teoria aprendida com este mestre é que NUNCA FOMOS MODERNOS pelo fato de sermos incapazes, ou mesmo por tratar-se de um destino, mas PORQUE NUNCA DESEJAMOS SER DE FATO MODERNOS, isto é, nunca nos convencemos totalmente das proclamadas virtudes políticas modernas para uso próprio.
Enfim, não fizemos aquela "escolha" que povos e nações considerados modernos fizeram em determinados momentos de suas histórias. Decidimos não arcar com certos compromissos, responsabilidades, consequências e os custos que uma "decisão" ou "escolha" pela modernidade implicou para essas sociedades. Mais ainda, simplesmente nos recusamos a abdicar de nosso passado ou mesmo varrê-lo para debaixo do tapete (cf a feliz expressão usada por Richard Morse), como muitas fizeram, mesmo que a um preço elevadíssimo.
Como bons fetichistas, adoradores de ídolos, paramos em nossa travessia no meio do deserto. Ali decidimos permanecer, fincamos nossas raízes com nossas pátinas, embora elas não tenham nos impedido de adotar as modas. Contudo, parte de nosso dilema não advém de termos ficado no meio do caminho apenas, mas de não darmos nenhum outro sentido tático a esta atitude de reserva e desconfiança diante do mundo moderno.
Independente de não concordar com muitas teses de Gilberto Freyre, creio que sua obra nos deixou algumas lições fundamentais: a primeira delas é que ele foi um pioneiro em relação às noções de híbridos, hibridismo, hibridizações tão celebradas nos dias de hoje; a nosso respeito, sempre declarou que a nossa condição híbrida não se reduzia à mestiçagem dos corpos somente, mas a tudo, desde crenças, valores, coisas e modos de vida. A segunda lição é que como híbridos, de fato, fomos jogados para a periferia do sistema ocidental, por aqueles que se julgam autenticamente ocidentais e modernos. Entretanto, um aspecto considerado por Freyre é que isso nos fez seres da fronteira e nos obrigou a olhar para as bordas desse mundo como partes constitutivas de nós mesmos, o que acabou nos conferindo um universalismo bem mais interessante e interessado do que o da dita cuja modernidade ocidental. Finalmente, a terceira lição é que talvez haja alguma virtude nisso tudo.
(...) A formação patriarcal do Brasil explica-se, tanto nas suas virtudes como nos seus defeitos, menos em termos de ´raça´ e de ´religião´ do que em termos econômicos, de experiência de cultura e de organização da família, que foi aqui a unidade colonizadora (...)
(...)A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro: de sua vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e polígamo...Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos aos poucos nos completar: é outro meio de procurar-se o ´tempo perdido´. (...) É um passado que se estuda tocando em nervos; um passado que emenda com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos(...)
(Gilberto Freyre, prefácio à primeira edição de Casa Grande e Senzala)