De origem latina, a palavra affectus significa afligir, abalar, atingir. Affectione também de origem latina significa ação de afetar, influência; estado resultante da influência sofrida; modificação. Ambos os termos fazem parte de um mesmo campo semântico, tendo affectione originado em português a palavra afecção que possui um sentido mais médico, relacionado às enfermidades, enquanto affectus originou afeto que passou a estar mais relacionado ao campo da afetividade, sentimentos, às paixões.
Affectus e affectione ou afeto no sentido de ser afetado e afecção são palavras que ajudam a pensar minhas relações com os avatares, estas criaturas exóticas, inteligentes, adoráveis, sociáveis, mas ao mesmo tempo também desagradáveis, grosseiras e até perversas. Alguns dirão se tratar de uma visão absurda, porque, afinal, avatares são signos, artefatos controlados por humanos. São "representações" de seus donos, estão ali simplesmente "no lugar" deles que permanecem do outro lado da tela do computador.
Em sentido estritamente técnico, o avatar é de fato um signo feito de pixels e prims como os demais objetos. Ainda em termos estritamente técnicos, ele estará ligado a um ou mais humanos através de uma conta e só poderá ser acessado mediante o login que consiste na digitação correta de seu nome e senha, ambos escolhidos e de conhecimento apenas de seu(s) dono(s) humano(s).
De qualquer modo, isso não resolve nada, ao contrário, é apenas o começo: o que é um avatar? Ainda não sei ao certo, mas sei que para se chegar a ser um usuário experiente e ter um avatar que reflita esta experiência, o que pode incluir ter um "belo avatar", o usuário e seu avatar deverão realizar um percurso, desenvolverem algo como uma biografia, o que exige um ciclo de vida, traduzido em tempo de imersão, isto é, interações com outros avatares a partir de seu próprio avatar, o que envolve também um aprendizado grande do programa, sem o que a qualidade das interações e da experiência ficará irremediavelmente comprometida, incluindo recompensas e vantagens sociais que justifiquem a continuidade das imersões.
Como na vida real, o usuário e seu avatar terão de passar por um processo de socialização que depende também de um certo "capital digital" acumulado e circulação por outras plataformas, além de outros games, redes sociais etc. Paralelamente terá de aprender muitas coisas sobre o ambiente como um todo, já que todas as suas relações com ele serão necessariamente mediadas por seu avatar. Isto exige além de um dominio do próprio programa (browse), um domínio também do "corpo" e da imagem visual (aparência, estética) de seu próprio avatar.
Durante todo este processo de aprendizagem, o usuário descobrirá então que seu avatar não é uma mera "representação", ou uma mera continuidade dele naquele ambiente apenas. Mais do que uma "representação", o avatar é também um "outro", uma "criatura", um duplo, enfim, ele é também uma relação com a alteridade. Para fazer esta constatação ele precisa ter adquirido experiência e maturidade com seu avatar, ter sabido lidar com a estranheza que ele implica e não tratá-lo como projeção de seu suposto EU somente. Ao fazer isso, ele se dará conta então de que foi profundamente afetado.
A maior parte dos usuários e residentes não gosta de falar muito sobre este assunto. Aqueles com os quais conversei a respeito, de certa forma me mostraram que sequer admitem estar afetados por seus avatares, porque não querem admitir sua dependência em relação a eles; outros não conseguem falar porque não possuem sequer consciência do tanto que sua própria subjetividade se encontra envolvida neste processo de agenciamento e afeto.
Uma coisa é certa, pelo menos para mim diante do que venho observando nesses três anos: não há maneira de se conhecer antropologicamente o Second Life sem se deixar afetar pelo seu avatar e pelo ambiente. Qual é o estatuto teórico deste "deixar-se afetar", eis a questão. Como sair da condição de "estar afetado" eis o problema, especialmente para aqueles que, em dado momento, não podem mais fazer as imersões com a mesma regularidade/intensidade e precisam retirar-se. Não por acaso, as "crises" e os "dramas" existem de sobra no SL. Talvez elas existam justamente para facilitarem, darem o pretexto para a separação ou a interrupção necessárias, sem o que, para muitos a continuidade no SL pode vir a representar um estado de profunda afecção.
Há casos em que esta necessidade não se impõe e o usuário segue desenvolvendo várias possibilidades e alternativas de SI no Second Life, ao mesmo tempo em que mantém sua persona humana relativamente estável, desempenhando seus papéis sociais e atividades em meio ao convívio social com seus familiares e amigos. Mas há muitos casos em que a relação com os dois mundos, as duas vidas se torna insuportável, tensa. Creio que aí, o ciclo de vida do avatar, similarmente ao plano da vida biológica humana pode desempenhar um papel importante: avatares podem envelhecer e alguns envelhecem rápido (como na vida real pessoas que envelhecem mais rapidamente do que outras). Venho observando ultimamente que a maioria dos avatares com os quais me deparo são posteriores a 2007, ou seja, a maior parte já é de 2010, seguidos dos avatares de 2009 e 2008, o que é um indicativo para mim de que meu avatar pode estar chegando à terceira idade...Time to die!
O que posso dizer a respeito do que escrevi acima é fundamentalmente baseado em minhas observações de campo. Ao dar início à minha pesquisa de campo, encontrei-me numa situação similar àquela enfrentada por Jeanne Favret-Saada, uma antropóloga francesa que estudou a feitiçaria no meio rural francês e que para poder realizar sua pesquisa aceitou ser afetada pela feitiçaria para poder investigá-la por uma perspectiva diferente dos estudos tradicionais sobre o assunto.
No meu caso, pareceu-me que para investigar o SL não era suficiente entrevistar usuários e seus avatares apenas, tampouco passar alguns meses e semanas/horas imersa registrando pontualmente situações e aplicando questionários. Para mim, o caminho foi aceitar me deixar afetar profundamente pela experiência, não através somente do relacionamento com os avatares de meus usuários informantes, mas me deixar ser afetada pela relação com meus próprios avatares, para então a partir deles construir as relações com os demais e, assim, penetrar neste mundo ao mesmo tempo misterioso, fetichsta, ou qualquer outra denominação que se queira dar a ele.
Uma conclusão provisória, visto que permaneço em trabalho de campo é que os avatares e o ambiente como um todo afetam seus donos e usuários, em alguns casos de forma profunda e irreversível. Eis outra questão: a conversão subjetiva é um fato e, claro, a extensão deste affectus depende de muitas variáveis, dentre elas, uma não menos importante que é a decisão e a opção do usuário em radicalizar e aprofundar sua vida on line em detrimento de sua vida off line.