sábado, 26 de junho de 2010

Sobre as fronteiras on line (1): 2D e 3D

"Dotado de uma vista mais sutil , verás todas as coisas instáveis".
(Nietzsche, a Vontade de poder)

Depois de algum tempo sem escrever estive relendo os posts anteriores e concluí que uma questão pouco explorada tem sido a das fronteiras internas existentes no próprio mundo on line, especialmente aquelas entre a internet 2D e a 3D. A pouca quantidade de material a respeito, salvo em publicações especializadas, se comparadas à torrente de artigos, teses, papers e matérias na mídia tradicional dedicadas às redes sociais 2D, como o facebook, twitter, orkut e etc confirmam a percepção de alteridade que ainda se encontra atrelada à internet 3D.

Ainda relacionado à quantidade de material publicado sobre as redes sociais 2D, vale observar que boa parte é para justificar o fato de elas serem úteis e necessárias e não porque existe também um problema de "gosto"e sensibilidade a ser discutido. Diante desta perspectiva tão pouco imaginativa das TIC´s, salvo jovens e adolescentes, poucos são os usuários adultos que se sentem confortáveis para declararem suas preferências em relação à rede, na condição de gamers, usuários e frequentadores de mundos virtuais (3D). Do ponto de vista dos especialistas da mídia é como se eles mantivessem uma relação conspícua com a internet, logo espúria, ou o que é pior diante da moralidade vigente - algo francamente condenável.

No post anterior afirmei que deixar-se afetar pelo próprio avatar é uma condição necessária para se compreender a "qualidade da experiência" de ser usuário ou residente de um mundo virtual como o Second Life. De fato, isto inclui o hedonismo, pois é ele que motiva as principais mudanças cognitivas e de sensibilidade promovidas pela internet 3D. O problema é que para muitos estas mudanças só fazem sentido ou merecem atenção se trouxerem algum valor utilitário/instrumental. Talvez esta seja uma razão pela qual a mídia tradicional deixou de prestar atenção ao SL tão logo descobriu que o valor utilitário dele é ainda
no presente momento pouco significativo.

Quando me referi ao tipo de affectus envolvido para entendermos o modo pelo qual ocorre o agenciamento entre humanos e objetos/artefatos técnicos digitais que constituem estes mundos, quis me referir inicialmente aos distintos regimes sensoriais com os quais temos de operar, em termos de humanos e avatares ao mesmo tempo e em ambientes específicos. Há uma "dividuação" nítida na internet 3D, até porque não existe a regra exclusiva de um usuário ter somente um único avatar como no filme Avatar e frequentar apenas um mundo virtual.

Isto posto, considero que boa parte da experiência em mundos virtuais consiste em adquirir a competência de apossar-se e operar com outros regimes sensoriais que poderão conduzir a outros modos e estados de consciência, especialmente no que diz respeito às distintas corporalidades às quais eles se encontram referidos, já que um usuário pode ter distintos avatares com formas corporais e visuais diversas em diferentes mundos virtuais. Ter dois ou mais avatares no Second Life já é bem diferente de ter apenas um que se acredita ser meramente uma representação do EU real.


Com dois avatares esta percepção começa a ficar claudicante, confusa, e completamente insustentável para quem tem 3, 4, 5, ou uma coleção de avatares e ainda frequenta outros tantos mundos! Portanto, saber lidar com estes regimes sensoriais interna e externamente demanda algo de SI que não pode ser ingenuamente identificado como problema de identidade. Aliás, uma categoria que não combina muito com mundos virtuais é a noção de identidade. Diante da extrema mobilidade das imagens que é a ação imaginária dominante nestes mundos, ela, a identidade simplesmente evapora-se por mais que se tente fazer um esforço no sentido da fixação e do repouso das imagens correspondentes (Bachelard, 1990).

Mas é preciso lembrar de outra diferença importante da internet 3D: o seu caráter imersivo que exige mais exclusividade de nossa atenção e acuidade visual/auditiva. Em relação às plataformas 2D, e do ponto de vista destes dois sentidos, as duas realidades - a digital e a presencial - parecem já estar muito mais misturadas e contínuas, mesmo que não se trate da ordem natural das coisas. Se tal não acontecia no início da internet, hoje ocorre por razões de ordem tecnológica e cognitiva. Enquanto acesso uma plataforma como o facebook, por exemplo, posso tanto estar atenta ao que acontece na tela, quanto ao que ocorre presencialmente ao meu redor. Nesta, bem como em outras interfaces digitais não encontro oposição à interação presencial e ela inclui ainda os demais sentidos como o tato, o olfato, mesmo que a tela esteja polarizando minha visão e audição.

O fato é que diante de plataformas 2D, salvo exceções, as sensações provenientes do mundo presencial continuam a ter uma enorme vigência sobre minha percepção da realidade, a ponto de, inclusive poderem concorrer e interferirem com o que vejo/escuto na tela. Enfim, da mesma forma que posso ser afetada por algo que se passa nela - um video no Youtube, por exemplo - posso ser também fortemente afetada pelo que acontece ao meu redor imediato e físico, como a sensação de frio do ambiente em que me encontro, a luminosidade do dia, os ruídos da rua ou a conversa entre pessoas que estejam próximas.

Enfim, com as plataformas 2D mantenho mais intacta minha consciência corporal (orgânica), mesmo tendo ela sofrido transformações por conta do agenciamento com a máquina, uma vez que ela não me impede de reagir a estímulos do ambiente físico e interagir com ele em termos de meus outros sentidos (tato, olfato, paladar) e sociabilidade. É evidente que afirmar a universalidade desta continuidade entre lá e cá constitui um problema empírico a ser investigado caso a caso, afinal não se trata de algo natural, mas construído e muito menos experimentado do mesmo modo por todos os usuários. Neste caso, variáveis como idade, gênero, origem social, escolaridade, ocupação podem ser marcadores importantes para pensarmos a questão da atenção, da organização e hierarquia dos sentidos.

Este não é o caso da experiência com a internet 3D. De fato, ela ainda implica em uma descontinuidade maior entre o mundo presencial e o digital, da mesma forma que fica patente as fronteiras on line entre os mundos virtuais e as demais plataformas 2D. É uma constatação empírica verificável por qualquer usuário a partir de seu login em um mundo virtual. Ele próprio observa que realiza um tipo de "deslocamento", um tipo de "transporte" durante os segundos que transcorrem até se conectar ao seu avatar. Ao realizá-lo, ele "sabe" que transpôs uma fronteira, a partir da qual alguma coisa muda no seu estado de consciência, bem como o seu "eu" presencial será temporariamente suspenso ao se "desconectar" do regime sensorial que o preside e organiza a sua percepção da realidade no "aqui e agora" presencial. É possível que em futuro próximo, esta percepção do deslocamento seja naturalizada ou desapareça devido à tecnologia, mas ainda não é assim.

No estado atual, este deslocamento é não apenas um componente fundamental da estranheza que estes mundos provocam, como se encontra por detrás de todas as motivações românticas que constituem as sensibilidades de seus usuários e os orientam em suas buscas de dépaysement.