"A moda sai de moda, o estilo jamais".
"Sou contra a moda que não dure. É o meu lado masculino. Não consigo imaginar que se jogue uma roupa fora, só porque é primavera"... (Coco Chanel)
Impossível estar em Paris e não se ligar no affair em torno de John Galliano que, numa noite fria dessas, bêbado, falou demais e ofendeu pessoas. Aqui, o entendimento de todos é que sua demissão da Dior foi necessária para obrigar o "mundo da moda" a se enquadrar aos padrões mínimos de civilidade republicana, especialmente numa cidade como Paris, cuja população e circulação de estrangeiros é enorme. É a politização do consumo chegando em grande estilo ao mundo da moda, à indústria do luxo, um tema que eu e meus colegas pesquisadores do consumo vimos debatendo em nossos últimos encontros (ENEC). Para mim, impossível também não fazer uma relação entre Galliano e o Second Life. É irresistível!
Para quem não sabe, a moda é um segmento importante da economia deste mundo virtual e, muito provavelmente seja o business mais bem sucedido do SL, em termos de volume de lojas e vendas. Muitos residentes empreendedores tornaram-se fashionistas, alguns com lucros fabulosos, vivendo basicamente de simular e recriar (copiar) no SL, não apenas a moda real, seus estilos e tendências, mas, sobretudo, o “mundo da moda” com seus valores e ética.
O leitor curioso em ver um pouco o poder de fogo deste negócio da moda digital não precisa botar os pés no SL, basta acessar o Flickr, uma das plataformas mais usadas pelos residentes fashionistas para divulgarem suas produções de moda inworld. O interessante do Flickr é que ele remete o leitor aos blogs desses mesmos fashionistas – leitura obrigatória para se saber mais a respeito dos corações e mentes dos habitantes deste mundo.
O leitor concluirá rapidamente que, coincidência ou não, a “perspectiva eugênica” de John Galliano (que no mundo da moda não é apenas compartilhada por ele, diga-se de passagem) se encontra presente no Second Life, com a diferença de que ali, ela ainda não é tão poderosa como na RL, ainda não constitui o senso comum, pelo menos entre a grande maioria dos avatares residentes.
Assim, para quem deseja que o SL continue um espaço cosmopolita e de liberdade é importante ficar de olho no segmento fashionista do SL, pois eu mesma já escutei/li e vi modos de tratamento à la Galliano lá dentro, o que seria uma espécie de traição imperdoável aos valores de inovação, criatividade e inteligência que caracterizam os games e a própria rede.
Segue assim, que na condição de usuária e residente gostaria de destacar algumas coisas que vem me incomodando faz tempo no SL e que tem tudo a ver com este triste episódio racista estrelado por John Galliano.
Da obrigação moral de ser jovem
Não existem quase avatares maduros ou mesmo idosos no SL. A quantidade é ínfima. Por que? Na condição de mulher madura na RL sou bastante sensível à questão do envelhecimento, logo, este sempre foi um assunto que me mobilizou lá dentro, particularmente pela falta de opções para fazer/ter um avatar adequado à minha condição real. Em várias situações saí em busca de shapes & skins maduros e na grande maioria das vezes deparei-me com criações caricaturais, bizarras, através das quais se reafirmavam os estereótipos do envelhecimento, razão pela qual muitos residentes como eu, que não confundem maturidade, envelhecimento com senilidade ou mesmo decadência física/mental, acabavam desistindo de usá-las.
Eu pergunto: por que não existem shapes & skins de boa qualidade para avatares maduros à venda? Grande parte dos usuários do SL possuem mais de 30 anos, muitos estão na faixa dos 40 e mesmo dos 50 anos. Qual é o problema então? Partindo-se do princípio de que um avatar pode se apresentar com diferentes aparências, tal como o Auké (personagem de um mito indígena brasileiro), por que ele não compraria também shapes & skins mais próximas de sua idade real, de boa qualidade?
Será que à la Galliano a mensagem é que para se frequentar o Second Life é preciso ser "sempre jovem", ou então simular somente a juventude? Ora se for isso, estamos diante de uma forma de discriminação e de preconceito tão injusto ou irracional quanto outros, pois estamos alimentando o imaginário de que a única fase da vida digna de ser vivida é a juventude. Para mim, além de uma representação falsa da realidade, ela acaba caindo igualmente na caricatura, no estereótipo, além de contradizer totalmente o capitalismo naquilo que foi a sua maior vitória nos tempos modernos, qual seja, aumentar os limites reais da vida humana, que hoje chega a ser na ordem de 70-75 anos em média nos países mais desenvolvidos. Outro fato importante é que as pessoas mais maduras continuarão a ser ainda por algum tempo aqueles com maior poder de compra no planeta! Se a aposentadoria não está mais no horizonte do futuro dos mais jovens, lamento dizer, ela continua a fazer parte da vida dos mais maduros.
Da obrigação moral de ser belo
Todo mundo tem direito à beleza e ela precisa ser, de fato, mais democratizada e não ficar somente acessível aos mais ricos e às celebridades. Contudo, penso que a beleza, tal como a juventude não podem ser uniformizadas. Outro equívoco é pensar que a beleza pode ser comoditizada, vendida como produto. Beleza é construção, arte de viver, experiência e isso não se compra, mas se adquire vida afora. Pode parecer filosofia barata de botequim, mas esta é de longe a perspectiva mais bem sucedida, aquela que, literalmente, não leva as pessoas prematuramente ao túmulo.
Entretanto, nos últimos tempos tenho notado um retrocesso na oferta e o estímulo à diferença está diminuindo drasticamente. Fico pasma quando vejo os álbuns do Flickr e me deparo com avatares literalmente iguais uns aos outros, apesar das marcas diferentes de skins que aparecem nos créditos! Acho que as pessoas se esqueceram de uma regra importante do jogo que é a singularização do avatar. O valor da singularização vem sendo sacrificado em nome de uma uniformidade insuportável, da mesmice generalizada. Na minha geração (2007), havia uma idéia presente de elaboração e construção do avatar que prevalecia sobre o poder de compra, ou mesmo a facilidade de compra.
Da moda como obrigação
Quando entrei no SL eu gostava de vestir o meu avatar com roupas independentemente de elas estarem na moda ou não. Fundamentalmente, meu critério para comprar as peças era as referências estéticas utilizadas pelo criador, seu trabalho de pesquisa, seu estilo, design, as texturas usadas, enfim, o trabalho daquele criador e, evidentemente, se aquela peça combinava ou não com o meu avatar.
Com o desenvolvimento do fashionismo, muitas dessas lojas desapareceram ou se renderam à modinha suprimindo a criatividade ou a exclusividade do estilo de um criador em detrimento dos ditames dos imperadores da moda local, tal como acontece no mundo real, em função da concorrência e da necessidade de vender. Ou seja, de repente seu avatar está com uma calça ou um vestido que você/ele adoram e um amigo avatar chega e proclama que vocês estão fora de moda! Eu já ouvi isso algumas vezes, e num tom de reprovação, como se fosse uma falta grave que não pudesse cometer! Como assim? Eu visto aquilo que me der vontade e que julgo ficar bem no meu avatar, que considero fazer parte do estilo dele e ponto final! Não tenho obrigação nenhuma de estar na moda, muito menos no SL!
Há uma diferença entre roupa e moda. Há pessoas que gostam de roupas e outras que gostam de moda. Pessoas que gostam de roupas geralmente acabam exercendo mais a liberdade para encontrarem aquilo que lhes cai melhor. Em suma, novamente a regra importante do jogo está sendo infringida, aquela referente à construção ou à elaboração de uma personagem com um estilo próprio, singularizada. Quem só pensa em seguir a moda, não consegue construir um estilo próprio para seu avatar.
Do sentimento geral de inadequação
Não é preciso ser um especialista para entender imediatamente que o que está em jogo é a tentativa de se levar para o SL este sentimento básico de inadequação generalizado, tal como ele se desenvolveu na vida real, com as pessoas eternamente insatisfeitas consigo mesmas, vivendo eternamente o luto de si próprias, procrastinando sua criatividade e estilo pessoais em nome de resultados estéticos impossíveis.
Se é assim, gostaria de dizer que não foi esta a minha experiência com o SL até então. Ao contrário, até certo momento, ele me permitiu um auto-conhecimento em direção ao apuramento de meu estilo pessoal, ao me dar mais segurança, referências e, portanto, autonomia para buscar aquilo que realmente me agradava e me interessava genuinamente em termos de estilo. Uma das coisas mais interessantes que o SL me proporcionou foi o fato de que lá me libertei definitivamente da tutela da moda RL, porque comecei a fazer pesquisas e a levar a sério o meu próprio (bom) gosto e estilo pessoais através das relações com minha avatar. Enquanto a construía, pude exercitar tudo isso e por várias vezes tenho agradecido a ela por ter me libertado dos Gallianos da primeira e segunda vidas.