segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

A vida social no Second Life (1): Igualdade e hierarquia; Indivíduo e pessoa

"Entre os objetos novos que, durante a minha demora nos Estados Unidos atraíram a minha atenção, nenhum me impressionou mais vivamente do que a igualdade de condições. Não me custou perceber a influência prodigiosa que essa realidade primária exerce sobre a marcha da sociedade; ela dá à opinião pública uma direção definida, uma tendência certa às leis, máximas novas aos governos e hábitos peculiares aos governados".
(Alexis de Tocqueville, Introdução à Democracia na América)

No post anterior afirmei que a "ética romântica" constitui o senso comum da "cultura SL". Embora não houvesse mencionado antes, pretendi usar a expressão - ética romântica - nos mesmos termos de Colin Campbell (1988). Para mim, estudiosa do consumo, ele foi o autor que melhor equacionou a discussão sobre o consumismo moderno e contemporâneo, ao orientar-se pela perspectiva de uma sociologia da cultura, em favor da mesma relação de causalidade proposta anteriormente por Weber, qual seja, aquela existente entre uma nova ética e uma determinada prática social que, aos poucos, vai adquirindo um sentido igualmente econômico. No caso do consumismo, ele demonstrou como a "ética romântica" fundada na valorização dos sentimentos e emoções, nos usos da imaginação, na invenção da subjetividade, na busca do amor romântico deu origem a um novo modelo de hedonismo, de caráter elusivo, imaginativo, que acabou por transformar profundamente nossas relações com as coisas, no sentido de se obter prazer com e através delas, e não apenas a distinção (reconhecimento, visibilidade, prestígio) social.

Ao mesmo tempo, ao chamar atenção para as variações que se apresentam no SL em relação ao próprio romantismo afirmei que elas não se devem somente às suas diferentes vertentes filosóficas e estéticas, mas às respectivas referências culturais que os grupos levam consigo, em função de suas origens sociais. Isto parece ficar muito evidente na forma pela qual os residentes afirmam suas singularidades, especialmente diante das premissas liberais, diga-se igualitárias e individualistas do Second Life.

Por conta disso, algum tempo atrás me ocorreu reler Tocqueville para entender melhor as diferenças e, sobretudo, compreender as várias divergências e conflitos que ocorriam no SL envolvendo residentes brasileiros, assunto ao qual voltarei mais adiante. Eu sabia que apesar de ser um ambiente globalizado, multicultural, o SL não deixava de ser um "pedaço" ou uma "fronteira avançada" da América, uma das muitas "comunidades imaginadas" inventadas pela cultura de massas norte-americana. Além disso, tomando-se cada grupo isoladamente, sabia também que os norte-americanos formam o maior contingente de residentes, muito embora isso não signifique dizer que eles constituem a maioria da população do SL, se somarmos todos os residentes pertencentes aos demais grupos. Mas o fato é que temos aí uma presença e uma participação muito significativas deste grupo, porque o programa é norte-americano, de propriedade e administrado por uma empresa norte-americana e, como já disse, as regras que regem as nossas segundas vidas foram concebidas de acordo com os valores daquela sociedade. Todas essas circunstâncias imprimem um sentido muito peculiar ao modus vivendi no SL e influenciam o modo pelo qual cada grupo é observado, percebido e classificado enquanto representante de nações e países reais específicos. Eis porque decidi voltar a Tocqueville.

Em 1831, aos 26 anos, o francês Alexis de Tocqueville viajou até os EUA para estudar e observar o funcionamento do sistema penitenciário norte-americano. Lá chegando, assombrou-se de tal modo com tudo o que viu, que decidiu permanecer mais tempo naquele país, viajar por vários estados e cidades a fim de recolher mais informações para escrever um tratado sobre a democracia na América, para ele, a primeira democracia de fato da era moderna. Segundo ele, o que permitira tal fenômeno e constituíra o traço distintivo da América em relação às demais nações modernas era a "igualdade de condições" existente, difundida por todas as regiões do país, em todos os escalões, algo que não acontecera nem mesmo nas sociedades européias. A pergunta que Tocqueville tenta responder em seu livro é: sim, mas então o que permitiu esta "igualdade de condições" sem precedentes?

Sem pretender fazer exatamente um tratado científico, a resposta de Tocqueville vai sendo construída através de uma descrição minuciosa dos usos, costumes, práticas sociais e os modos de funcionamento das instituições norte-americanas, tanto jurídicas e políticas, quanto religiosas e econômicas. Todos estes registros levaram seu autor a uma associação sui generis e inédita entre igualitarismo e individualismo que, a despeito de tudo, vicejou e acabou por tornar-se dominante na vida social norte-americana.

Em outras palavras, àquelas alturas, esta sociedade conseguira estabelecer uma equação bem sucedida entre o indivíduo e o cidadão, de tal forma que mesmo o cidadão estando submetido às leis universais e às regras morais rigorosas de sua comunidade, ele teria autonomia suficiente como indivíduo para reinventar sua vida privada, íntima, sua biografia enfim, muitas vezes começando do zero, bastando botar os pés na estrada.

Enquanto lia Tocqueville tentei observar o SL a partir de suas lentes e me ocorreu imaginar o que ele diria sobre os brasileiros se tivesse estado entre nós. Certamente não se assombraria tanto, até porque não seríamos para ele tão diferentes dos europeus de sua época. Ele poderia dizer que nossa diferença em relação aos norte-americanos, por exemplo, não reside tanto na ausência de individualismo, mas na força moral (religiosa), jurídica, política e econômica que a noção de hierarquia possui entre nós, ao contrário dos EUA, onde a questão religiosa lá foi fundamental para fazer com que todas as formas de hierarquia fossem subsumidas pela ética igualitária.

No Brasil, a hierarquia permaneceu sendo o idioma social dominante. Por conta disso ela acabou por enfraquecer entre nós os atributos positivos do individualismo, transformando-os em atributos negativos, disruptivos, heréticos. Boa parte de nossa diferença em relação aos demais povos onde o igualitarismo e o individualismo se fortaleceram consiste no fato de continuarmos a acreditar que a hierarquia é um "dado" constitutivo da ordem social per si. Neste sentido, we´re all catholics.

Assim, entre nós, as premissas hierárquicas facilitam o holismo e não o individualismo, isto é, a valorização social da pessoa e não do indivíduo, salvo em algumas ocasiões e situações, devidamente ritualizadas, portanto controláveis e previsíveis socialmente, como nos ensina DaMatta (1979). No mais, fora dos contextos permitidos, toda diferença é rapidamente diluída e transformada em desigualdade, seja para baixo ou para cima, para mais ou para menos, donde a busca pela diferença ser considerada uma maldição social, muitas vezes associada à traição, portanto a algo que ameaça a coesão social do grupo.

Certa vez eu e um casal de avatares igualmente brasileiros fomos convidados para uma festa no SL, na ilha de um amigo avatar alemão. Como era um lugar com uma concentração grande de avatares de diferentes procedências, em dado momento pedi a eles, incluindo o anfitrião, que fizessem uma classificação dos avatares presentes por tipos. Enquanto o alemão percebia uma diversidade grande de tipos de avatares e preferia classificá-los em várias categorias, como bonitos, feios, interessantes, exóticos, bizarros, alternativos, grandes e pequenos, complexos e simples, meus amigos brasileiros se entregavam a uma discussão bizantina para estabelecerem uma única série hierárquica que incluísse todos os avatares, do tipo fulana é mais bonita do que sicrana que, por sua vez é um pouco menos bonita do que beltrana. Diante desta forma de classificação que lhe pareceu estapafurdia, o avatar alemão perguntou a eles: "- mas o que permite vocês juntarem todos os avatares desta forma? Nós sequer falamos a mesma língua! LOL!"

Rapidamente entendi a ironia alemã e procurei "entrar" na cabeça dos meus amigos para entender melhor a árdua tarefa classificatória a qual se entregavam. Não foi difícil perceber que eles sequer incluíram em suas tabelas mentais categorias como avatares interessantes, exóticos, bizarros e alternativos. Para eles, estas categorias, além de inexistentes, não faziam o menor sentido, era "coisa de gringo" e o mundo SL se dividia apenas entre os avatares que eram feios (maioria) e os que conseguiam ser bonitos (minoria), ponto. Confesso que também não consegui ir além de três ou quatro categorias, pois não conseguia ver diferença alguma entre exótico e bizarro naquele contexto! Mas vi que o amigo alemão sabia perfeitamente distingui-los, sem no entanto hierarquizá-los. Para ele estava fora de questão um "avatar interessante" ser posto numa condição hierarquicamente superior ou melhor a de um "avatar bizarro" e vice-versa. Saí da festa extremamente perplexa com a minha relativa miopia se comparada ao olhar aguçado de meu anfitrião, mais ainda, com a de meus amigos brasileiros que, durante toda a madrugada, não se cansaram de discutir comigo suas respectivas listas hierárquicas. E o mais incrível é que eles conseguiram encaixar TODOS os participantes da festa, de A a Z (que chegou a ter bem mais de 50 convidados)!

Diante deste episódio totalmente nonsense, mas epistemologicamente sério fiquei refletindo sobre as respectivas lógicas e critérios classificatórios em jogo. Foi quando decidi reler Campbell, Tocqueville e retomar meus escritos sobre as telenovelas (cujo estudo me dediquei por vários anos). De fato, relendo os textos me dei conta de que as telenovelas e a televisão influenciam bastante o modo de os brasileiros estarem no SL e na internet de modo geral, diferentemente dos demais grupos de estrangeiros que levam consigo muitas outras referências culturais, além da televisão (mesmo os americanos): a cultura impressa em seus gêneros e formatos variados, a literatura, museus, galerias de artes, música, showbizz, teatro, cinema, a cultura dos campi etc.

O fato é que no caso dos brasileiros, tal como nas novelas, avatares diferentes, singularizados, que se colocam mais como indivíduos e menos como pessoas, ou se tornam outsiders ou podem ser rapidamente vilanizados. Como nas novelas, ser um "avatar brasileiro individualizado" é via de regra confundido pelos demais avatares brasileiros com atributos negativos como egoísmo, soberba, ou falta de caráter mesmo. Ao mesmo tempo, a demanda por autonomia e independência é também via de regra confundida com atitudes anti-sociais, desobediência e, no limite com traição. Paralelamente, o romantismo serve tão somente para alimentar a construção da afinidade, a busca de parceiros, reduzida ao romance e aos seus aspectos sentimentais.

Com raras excessões não há muito lugar para o individualismo entre brasileiros, especialmente naquele sentido moderno e romântico do "caminhante solitário" de Rousseau (ou de Thoreau, ou mesmo Kerouac para os americanos). Como nas novelas, a maioria dos residentes brasileiros observados por mim consideram que a única trajetória bem sucedida é aquela de um avatar-indivíduo tornar-se um avatar-pessoa, isto é, passar a fazer parte ou integrar um grupo de amigos e viver sob a proteção dele (o todo precede as partes e prevalece moralmente sobre elas). No caso, o modelo ideal de grupo continua sendo a Família (tal como nas novelas), logo os problemas e os dramas são familiares e não individuais. A liberdade de se poder explorar outras possibilidades com seu avatar esbarra numa espécie de censura moral, adquire um sentido transgressor, de algo escuso, feito de forma escondida ou velada somente com os alts (avatares alternativos) e perde para a valorização do vínculo, especialmente na forma da dependência e fidelidade aos grupos de sociabilidade e de alianças que se constituem. Sob a moralidade do vínculo se reafirma a moralidade da hierarquia.

Entretanto, é bom afirmar que de forma alguma quero dizer que os demais grupos ignoram esta mesma trajetória e não as valorizam. Em toda minha segunda vida residi em regiões e ilhas controladas por avatares estrangeiros e tenho observado o quanto são interessados e envolvidos com questões de relacionamento também. Contudo, o leque de opções me parece bem mais diversificado e a busca da felicidade não se restringe à construção de vínculos, ao convívio social apenas. Ela pode acontecer na forma de um encontro inusitado consigo mesmo em circunstâncias extremas e especiais e o SL passa a ser mais um ambiente favorável para que essas circunstâncias aconteçam. Amizades são benvindas e valorizadas até o momento em que não comprometam a autonomia de uns e outros. Muitos estão ali porque querem explorar suas capacidades criativas, suas diferentes possibilidades de expressão ou preferem estar sozinhos porque se sentem livres para isso.





segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A dor e a delicia de ter um avatar (2): fetichismo

"...A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando eu acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas, mas não posso explicar a mim mesma...

...Concordo inteiramente com você - disse a Duquesa. E a moral disso é: 'Seja o que você pareceria ser'. Ou se você preferir isso dito de uma maneira mais simples: 'Nunca se imagine como não sendo outra coisa do que aquilo que poderia parecer aos outros que aquilo que você foi ou poderia ter sido não fosse outra coisa do que o que você poderia ter sido parecia ser a eles outra coisa'..."
(Lewis Carol, Alice no país das maravilhas)
Em tempos de carnaval, quis fazer um intervalo nas reflexões sobre meus experimentos ciber-ambientais e trazer de volta o tema dos avatares. Faço isso porque sem a presença deles, a discussão sobre a criação de ambientes, arquitetura & design virtuais, ou quaisquer outras coisas, não faz o menor sentido. No Second Life, todo processo criativo é um evento desencadeado pela vontade do residente, mas só possível de ser desenvolvido e realizado através de seus avatares.

É verdade que a criação de muitos objetos exige que o residente criador/produtor comece seu trabalho fora do SL, utilizando outros softwares, como o PS, e somente depois o leve para dentro do SL para ser finalizado. De toda a forma é sob a égide do avatar de seu criador que ele, o objeto, é entronizado neste mundo virtual. Por enquanto a Linden Lab só detém a exclusividade de "criar" as ilhas, as mainlands e os avatares genéricos com os quais damos origem às nossas segundas vidas.

Fundamentalmente, um avatar é um objeto técnico imaterial, como todos os demais que circulam no SL. Porém na hierarquia dos objetos, ele é o objeto-rei, aquele a partir do qual e, em função do qual todas as coisas são criadas para circularem neste mundo, através da venda, compra, dádiva (gift), troca ou mesmo roubo (copybot). Assim, com exceção das "terras" e dos próprios avatares, ambos prerrogativas da LL, um residente com imaginação, habilidades e competências pode criar/construir através de seus avatares praticamente o que quiser no SL.

Mesmo não podendo gerar seu próprio avatar, os recursos que o programa dispõe, além dos acessórios criados pelos próprios residentes permitem a sua singularização, ao ponto de dotá-lo com uma aparência única - realista ou não. Há de tudo para todos os gostos. Esses dados objetivos podem ser confirmados por quem tem acesso ao SL. Não existem quase controvérsias em torno deles.

Elas começam a surgir quando pedimos aos residentes para dizerem 'o que é um avatar', levando em conta suas experiências. Aí sim, a situação muda inteiramente de figura e se apresenta com contornos emocionais intensos, não porque as percepções sejam estruturalmente distintas, mas pelo fato de a variedade explicitar disputas de poder existentes, o que não significa dizer que um mesmo residente com seus vários avatares não partilhe e experimente várias delas ao mesmo tempo e ao longo de sua segunda vida.

De toda a forma, a crença dominante, aquela que se constitui no senso comum da "cultura SL" é a de que o avatar (
no caso, um boneco digital em 3D) é o "representante" do sujeito. Ato contínuo, este sujeito que em muitos depoimentos recebidos afirmou acreditar piamente controlar seu representante-avatar é basicamente concebido em termos românticos, isto é, a partir de um individualismo exacerbado; que reivindica para si todas as atenções; se considera portador de uma sensibilidade e subjetividade únicas e se permite envolver em todo tipo de drama, romances, além de esparramar suas emoções e sentimentos por todos os lados.

É importante assinalar que em maior ou menor grau todos os residentes partilham da crença romântica. Como escrevi em outro post, o romantismo é a ética dominante e possui um caráter universal no Second Life, dada as condições mesmas de usabilidade do programa, tal como a irremediável mediação do avatar e, consequentemente, sua centralidade neste mundo. Não por acaso, a relação sujeito - avatar torna-se facilmente fetichizada e isso explica em grande medida a propensão ao exagero sentimental.

Em todo o caso, visões alternativas existem e se desenvolvem a partir da experiência, de acordo com a trajetória e atividades desenvolvidas pelo residente RL/SL e, fundamentalmente em função dos respectivos capitais sociais que cada um leva consigo. Artistas, cientistas, intelectuais estão entre os grupos que visivelmente assumem posturas alternativas, muitas vezes críticas, mas não necessariamente dissidentes em relação à ética romântica. Ao contrário, podem muitas vezes aprofundar o ethos romântico, na direção de suas vertentes estéticas e filosóficas mais radicais e até polêmicas, usando táticas e poéticas mais singularizadoras nas relações com seus avatares e com os objetos que criam. De um modo geral, suas criações e atitudes refletem uma preocupação constante com a busca de uma uniqueness.

De fato, uma questão importante neste mundo é a construção da distinção (Bourdieu, 1979) a partir do exercício do gosto e das práticas de singularização que ele pode promover, começando pelo próprio avatar, objeto privilegiado desses investimentos estéticos singularizadores. A aparência do avatar é o cartão de visitas do residente sob vários aspectos, na medida em que reflete suas intenções neste mundo. Neste sentido, pode haver também um paralelismo com a RL e o resultado disso é uma relação
de tal ordem intensa com o avatar que ele acaba sendo investido pelo próprio dono de "vida e vontade próprias". Sob este aspecto, o SL é um laboratório onde entre muitas coisas podemos observar de modo privilegiado o fenômeno do fetichismo. Voltarei a este ponto mais adiante.

Diante disso e dependendo de seus objetivos, o residente é posto frente a um dilema: ou bem ele aprende a lidar e a controlar os efeitos deletérios desse fetichismo, ou acaba por sucumbir inteiramente a ele. Não raro a segunda opção ocorre, da mesma forma que, não raro, a primeira opção exige medidas preventivas. O fato é que, diante deste dilema, os residentes aprendem a operar com duas lógicas ao mesmo tempo: a da separação e da hibridização.

A primeira lógica está relacionada à proteção de suas vidas reais. Para muitos, uma questão que se impõe como condição mesma para se manterem no SL é a de preservarem suas RLs, não permitindo que a segunda vida ultrapasse as fronteiras digitais e comprometa seus vínculos e posições sociais reais, bem como suas atividades. Em muitos casos, torna-se necessário preservarem o anonimato de suas identidades reais, o que vem a ser uma negociação sempre muito delicada, tensa, cujo equilibrio e controle estão sempre sendo ameaçados, exatamente pelo fetichismo que a relação com o avatar acaba impondo (especialmente exacerbados quando há relacionamentos afetivos em jogo, promovidos e mediados pelos avatares).

As duas lógicas decorrem exatamente desta experiência comum de em algum momento todos, sem exceção, se depararem com o fetichismo de seus próprios avatares, isto é, com a aparente vontade própria que eles parecem adquirir e que faz com que as posições todas se embaralhem no decorrer das interações: as pessoas passem a agir como coisas, enquanto as coisas-avatares assumem os lugares das pessoas.

Algumas pessoas percebem mais rapidamente do que outras que nem sempre estão no comando da situação em relação aos seus próprios avatares e ao modo como eles agenciam e mobilizam seus próprios desejos. De login em login, as externalidades do fetichismo se tornam por demais evidentes, até porque a maior parte dos conflitos entre residentes - e eles acontecem com bastante frequência e virulência - são motivados por disputas que envolvem seus avatares como protagonistas principais.

A propósito dessas disputas e conflitos a "magia do avatar" é um fato e se ela nos remete para alguma região concernente a nós mesmos, não tem nada a ver com a nossa boa consciência moral, mas sempre com nossos desejos. Somos ali sempre "traídos pelo desejo" por intermédio dessas criaturas. Isto é fascinante e pode-se aprender bastante sobre si mesmo com esta experiência, mas é também assustador, e a maior parte das pessoas não consegue encarar, embora esteja brincando
com o fogo todo o tempo. Acabam por naturalizar tudo ou então saem fora frustrados com o programa.

Mas nem tudo são dramas, pois há aqueles que conseguem equacionar muito bem suas duas vidas. Entre as várias alternativas observadas tem o grupo que denominei de "os amigos do Preedy". São aqueles que parecem ter entrado no SL com o livro de Erving Goffman debaixo do braço. Estes residentes invocam menos um EU profundo ou sentimental e operam mais com idéias como ator, personagem, papel, performance. Eles exercitam conscientemente aquilo que Goffman discute no capitulo VI de A representação do Eu na vida cotidiana - a arte de manipular a impressão como algo constitutivo do jogo social. O resultado desta perspectiva é que não naturalizam as relações com suas criaturas e por isso acabam tirando um proveito criativo e reflexivo
maiores da estranheza que suas experiências com elas propiciam.

Nestes casos, não creio que o fetichismo seja um obstáculo, mas uma questão filosófica a ser enfrentada no "jogo". Alguma coisa que nos obriga a lembrar que enquanto "jogo", o SL oferece um ponto de vista privilegiado sobre a vida social.