"Entre os objetos novos que, durante a minha demora nos Estados Unidos atraíram a minha atenção, nenhum me impressionou mais vivamente do que a igualdade de condições. Não me custou perceber a influência prodigiosa que essa realidade primária exerce sobre a marcha da sociedade; ela dá à opinião pública uma direção definida, uma tendência certa às leis, máximas novas aos governos e hábitos peculiares aos governados".
(Alexis de Tocqueville, Introdução à Democracia na América)
No post anterior afirmei que a "ética romântica" constitui o senso comum da "cultura SL". Embora não houvesse mencionado antes, pretendi usar a expressão - ética romântica - nos mesmos termos de Colin Campbell (1988). Para mim, estudiosa do consumo, ele foi o autor que melhor equacionou a discussão sobre o consumismo moderno e contemporâneo, ao orientar-se pela perspectiva de uma sociologia da cultura, em favor da mesma relação de causalidade proposta anteriormente por Weber, qual seja, aquela existente entre uma nova ética e uma determinada prática social que, aos poucos, vai adquirindo um sentido igualmente econômico. No caso do consumismo, ele demonstrou como a "ética romântica" fundada na valorização dos sentimentos e emoções, nos usos da imaginação, na invenção da subjetividade, na busca do amor romântico deu origem a um novo modelo de hedonismo, de caráter elusivo, imaginativo, que acabou por transformar profundamente nossas relações com as coisas, no sentido de se obter prazer com e através delas, e não apenas a distinção (reconhecimento, visibilidade, prestígio) social.
Ao mesmo tempo, ao chamar atenção para as variações que se apresentam no SL em relação ao próprio romantismo afirmei que elas não se devem somente às suas diferentes vertentes filosóficas e estéticas, mas às respectivas referências culturais que os grupos levam consigo, em função de suas origens sociais. Isto parece ficar muito evidente na forma pela qual os residentes afirmam suas singularidades, especialmente diante das premissas liberais, diga-se igualitárias e individualistas do Second Life.
Por conta disso, algum tempo atrás me ocorreu reler Tocqueville para entender melhor as diferenças e, sobretudo, compreender as várias divergências e conflitos que ocorriam no SL envolvendo residentes brasileiros, assunto ao qual voltarei mais adiante. Eu sabia que apesar de ser um ambiente globalizado, multicultural, o SL não deixava de ser um "pedaço" ou uma "fronteira avançada" da América, uma das muitas "comunidades imaginadas" inventadas pela cultura de massas norte-americana. Além disso, tomando-se cada grupo isoladamente, sabia também que os norte-americanos formam o maior contingente de residentes, muito embora isso não signifique dizer que eles constituem a maioria da população do SL, se somarmos todos os residentes pertencentes aos demais grupos. Mas o fato é que temos aí uma presença e uma participação muito significativas deste grupo, porque o programa é norte-americano, de propriedade e administrado por uma empresa norte-americana e, como já disse, as regras que regem as nossas segundas vidas foram concebidas de acordo com os valores daquela sociedade. Todas essas circunstâncias imprimem um sentido muito peculiar ao modus vivendi no SL e influenciam o modo pelo qual cada grupo é observado, percebido e classificado enquanto representante de nações e países reais específicos. Eis porque decidi voltar a Tocqueville.
Em 1831, aos 26 anos, o francês Alexis de Tocqueville viajou até os EUA para estudar e observar o funcionamento do sistema penitenciário norte-americano. Lá chegando, assombrou-se de tal modo com tudo o que viu, que decidiu permanecer mais tempo naquele país, viajar por vários estados e cidades a fim de recolher mais informações para escrever um tratado sobre a democracia na América, para ele, a primeira democracia de fato da era moderna. Segundo ele, o que permitira tal fenômeno e constituíra o traço distintivo da América em relação às demais nações modernas era a "igualdade de condições" existente, difundida por todas as regiões do país, em todos os escalões, algo que não acontecera nem mesmo nas sociedades européias. A pergunta que Tocqueville tenta responder em seu livro é: sim, mas então o que permitiu esta "igualdade de condições" sem precedentes?
Sem pretender fazer exatamente um tratado científico, a resposta de Tocqueville vai sendo construída através de uma descrição minuciosa dos usos, costumes, práticas sociais e os modos de funcionamento das instituições norte-americanas, tanto jurídicas e políticas, quanto religiosas e econômicas. Todos estes registros levaram seu autor a uma associação sui generis e inédita entre igualitarismo e individualismo que, a despeito de tudo, vicejou e acabou por tornar-se dominante na vida social norte-americana.
Em outras palavras, àquelas alturas, esta sociedade conseguira estabelecer uma equação bem sucedida entre o indivíduo e o cidadão, de tal forma que mesmo o cidadão estando submetido às leis universais e às regras morais rigorosas de sua comunidade, ele teria autonomia suficiente como indivíduo para reinventar sua vida privada, íntima, sua biografia enfim, muitas vezes começando do zero, bastando botar os pés na estrada.
Enquanto lia Tocqueville tentei observar o SL a partir de suas lentes e me ocorreu imaginar o que ele diria sobre os brasileiros se tivesse estado entre nós. Certamente não se assombraria tanto, até porque não seríamos para ele tão diferentes dos europeus de sua época. Ele poderia dizer que nossa diferença em relação aos norte-americanos, por exemplo, não reside tanto na ausência de individualismo, mas na força moral (religiosa), jurídica, política e econômica que a noção de hierarquia possui entre nós, ao contrário dos EUA, onde a questão religiosa lá foi fundamental para fazer com que todas as formas de hierarquia fossem subsumidas pela ética igualitária.
No Brasil, a hierarquia permaneceu sendo o idioma social dominante. Por conta disso ela acabou por enfraquecer entre nós os atributos positivos do individualismo, transformando-os em atributos negativos, disruptivos, heréticos. Boa parte de nossa diferença em relação aos demais povos onde o igualitarismo e o individualismo se fortaleceram consiste no fato de continuarmos a acreditar que a hierarquia é um "dado" constitutivo da ordem social per si. Neste sentido, we´re all catholics.
Assim, entre nós, as premissas hierárquicas facilitam o holismo e não o individualismo, isto é, a valorização social da pessoa e não do indivíduo, salvo em algumas ocasiões e situações, devidamente ritualizadas, portanto controláveis e previsíveis socialmente, como nos ensina DaMatta (1979). No mais, fora dos contextos permitidos, toda diferença é rapidamente diluída e transformada em desigualdade, seja para baixo ou para cima, para mais ou para menos, donde a busca pela diferença ser considerada uma maldição social, muitas vezes associada à traição, portanto a algo que ameaça a coesão social do grupo.
Certa vez eu e um casal de avatares igualmente brasileiros fomos convidados para uma festa no SL, na ilha de um amigo avatar alemão. Como era um lugar com uma concentração grande de avatares de diferentes procedências, em dado momento pedi a eles, incluindo o anfitrião, que fizessem uma classificação dos avatares presentes por tipos. Enquanto o alemão percebia uma diversidade grande de tipos de avatares e preferia classificá-los em várias categorias, como bonitos, feios, interessantes, exóticos, bizarros, alternativos, grandes e pequenos, complexos e simples, meus amigos brasileiros se entregavam a uma discussão bizantina para estabelecerem uma única série hierárquica que incluísse todos os avatares, do tipo fulana é mais bonita do que sicrana que, por sua vez é um pouco menos bonita do que beltrana. Diante desta forma de classificação que lhe pareceu estapafurdia, o avatar alemão perguntou a eles: "- mas o que permite vocês juntarem todos os avatares desta forma? Nós sequer falamos a mesma língua! LOL!"
Rapidamente entendi a ironia alemã e procurei "entrar" na cabeça dos meus amigos para entender melhor a árdua tarefa classificatória a qual se entregavam. Não foi difícil perceber que eles sequer incluíram em suas tabelas mentais categorias como avatares interessantes, exóticos, bizarros e alternativos. Para eles, estas categorias, além de inexistentes, não faziam o menor sentido, era "coisa de gringo" e o mundo SL se dividia apenas entre os avatares que eram feios (maioria) e os que conseguiam ser bonitos (minoria), ponto. Confesso que também não consegui ir além de três ou quatro categorias, pois não conseguia ver diferença alguma entre exótico e bizarro naquele contexto! Mas vi que o amigo alemão sabia perfeitamente distingui-los, sem no entanto hierarquizá-los. Para ele estava fora de questão um "avatar interessante" ser posto numa condição hierarquicamente superior ou melhor a de um "avatar bizarro" e vice-versa. Saí da festa extremamente perplexa com a minha relativa miopia se comparada ao olhar aguçado de meu anfitrião, mais ainda, com a de meus amigos brasileiros que, durante toda a madrugada, não se cansaram de discutir comigo suas respectivas listas hierárquicas. E o mais incrível é que eles conseguiram encaixar TODOS os participantes da festa, de A a Z (que chegou a ter bem mais de 50 convidados)!
Diante deste episódio totalmente nonsense, mas epistemologicamente sério fiquei refletindo sobre as respectivas lógicas e critérios classificatórios em jogo. Foi quando decidi reler Campbell, Tocqueville e retomar meus escritos sobre as telenovelas (cujo estudo me dediquei por vários anos). De fato, relendo os textos me dei conta de que as telenovelas e a televisão influenciam bastante o modo de os brasileiros estarem no SL e na internet de modo geral, diferentemente dos demais grupos de estrangeiros que levam consigo muitas outras referências culturais, além da televisão (mesmo os americanos): a cultura impressa em seus gêneros e formatos variados, a literatura, museus, galerias de artes, música, showbizz, teatro, cinema, a cultura dos campi etc.
O fato é que no caso dos brasileiros, tal como nas novelas, avatares diferentes, singularizados, que se colocam mais como indivíduos e menos como pessoas, ou se tornam outsiders ou podem ser rapidamente vilanizados. Como nas novelas, ser um "avatar brasileiro individualizado" é via de regra confundido pelos demais avatares brasileiros com atributos negativos como egoísmo, soberba, ou falta de caráter mesmo. Ao mesmo tempo, a demanda por autonomia e independência é também via de regra confundida com atitudes anti-sociais, desobediência e, no limite com traição. Paralelamente, o romantismo serve tão somente para alimentar a construção da afinidade, a busca de parceiros, reduzida ao romance e aos seus aspectos sentimentais.
Com raras excessões não há muito lugar para o individualismo entre brasileiros, especialmente naquele sentido moderno e romântico do "caminhante solitário" de Rousseau (ou de Thoreau, ou mesmo Kerouac para os americanos). Como nas novelas, a maioria dos residentes brasileiros observados por mim consideram que a única trajetória bem sucedida é aquela de um avatar-indivíduo tornar-se um avatar-pessoa, isto é, passar a fazer parte ou integrar um grupo de amigos e viver sob a proteção dele (o todo precede as partes e prevalece moralmente sobre elas). No caso, o modelo ideal de grupo continua sendo a Família (tal como nas novelas), logo os problemas e os dramas são familiares e não individuais. A liberdade de se poder explorar outras possibilidades com seu avatar esbarra numa espécie de censura moral, adquire um sentido transgressor, de algo escuso, feito de forma escondida ou velada somente com os alts (avatares alternativos) e perde para a valorização do vínculo, especialmente na forma da dependência e fidelidade aos grupos de sociabilidade e de alianças que se constituem. Sob a moralidade do vínculo se reafirma a moralidade da hierarquia.
Entretanto, é bom afirmar que de forma alguma quero dizer que os demais grupos ignoram esta mesma trajetória e não as valorizam. Em toda minha segunda vida residi em regiões e ilhas controladas por avatares estrangeiros e tenho observado o quanto são interessados e envolvidos com questões de relacionamento também. Contudo, o leque de opções me parece bem mais diversificado e a busca da felicidade não se restringe à construção de vínculos, ao convívio social apenas. Ela pode acontecer na forma de um encontro inusitado consigo mesmo em circunstâncias extremas e especiais e o SL passa a ser mais um ambiente favorável para que essas circunstâncias aconteçam. Amizades são benvindas e valorizadas até o momento em que não comprometam a autonomia de uns e outros. Muitos estão ali porque querem explorar suas capacidades criativas, suas diferentes possibilidades de expressão ou preferem estar sozinhos porque se sentem livres para isso.