segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A dor e a delicia de ter um avatar (2): fetichismo

"...A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando eu acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas, mas não posso explicar a mim mesma...

...Concordo inteiramente com você - disse a Duquesa. E a moral disso é: 'Seja o que você pareceria ser'. Ou se você preferir isso dito de uma maneira mais simples: 'Nunca se imagine como não sendo outra coisa do que aquilo que poderia parecer aos outros que aquilo que você foi ou poderia ter sido não fosse outra coisa do que o que você poderia ter sido parecia ser a eles outra coisa'..."
(Lewis Carol, Alice no país das maravilhas)
Em tempos de carnaval, quis fazer um intervalo nas reflexões sobre meus experimentos ciber-ambientais e trazer de volta o tema dos avatares. Faço isso porque sem a presença deles, a discussão sobre a criação de ambientes, arquitetura & design virtuais, ou quaisquer outras coisas, não faz o menor sentido. No Second Life, todo processo criativo é um evento desencadeado pela vontade do residente, mas só possível de ser desenvolvido e realizado através de seus avatares.

É verdade que a criação de muitos objetos exige que o residente criador/produtor comece seu trabalho fora do SL, utilizando outros softwares, como o PS, e somente depois o leve para dentro do SL para ser finalizado. De toda a forma é sob a égide do avatar de seu criador que ele, o objeto, é entronizado neste mundo virtual. Por enquanto a Linden Lab só detém a exclusividade de "criar" as ilhas, as mainlands e os avatares genéricos com os quais damos origem às nossas segundas vidas.

Fundamentalmente, um avatar é um objeto técnico imaterial, como todos os demais que circulam no SL. Porém na hierarquia dos objetos, ele é o objeto-rei, aquele a partir do qual e, em função do qual todas as coisas são criadas para circularem neste mundo, através da venda, compra, dádiva (gift), troca ou mesmo roubo (copybot). Assim, com exceção das "terras" e dos próprios avatares, ambos prerrogativas da LL, um residente com imaginação, habilidades e competências pode criar/construir através de seus avatares praticamente o que quiser no SL.

Mesmo não podendo gerar seu próprio avatar, os recursos que o programa dispõe, além dos acessórios criados pelos próprios residentes permitem a sua singularização, ao ponto de dotá-lo com uma aparência única - realista ou não. Há de tudo para todos os gostos. Esses dados objetivos podem ser confirmados por quem tem acesso ao SL. Não existem quase controvérsias em torno deles.

Elas começam a surgir quando pedimos aos residentes para dizerem 'o que é um avatar', levando em conta suas experiências. Aí sim, a situação muda inteiramente de figura e se apresenta com contornos emocionais intensos, não porque as percepções sejam estruturalmente distintas, mas pelo fato de a variedade explicitar disputas de poder existentes, o que não significa dizer que um mesmo residente com seus vários avatares não partilhe e experimente várias delas ao mesmo tempo e ao longo de sua segunda vida.

De toda a forma, a crença dominante, aquela que se constitui no senso comum da "cultura SL" é a de que o avatar (
no caso, um boneco digital em 3D) é o "representante" do sujeito. Ato contínuo, este sujeito que em muitos depoimentos recebidos afirmou acreditar piamente controlar seu representante-avatar é basicamente concebido em termos românticos, isto é, a partir de um individualismo exacerbado; que reivindica para si todas as atenções; se considera portador de uma sensibilidade e subjetividade únicas e se permite envolver em todo tipo de drama, romances, além de esparramar suas emoções e sentimentos por todos os lados.

É importante assinalar que em maior ou menor grau todos os residentes partilham da crença romântica. Como escrevi em outro post, o romantismo é a ética dominante e possui um caráter universal no Second Life, dada as condições mesmas de usabilidade do programa, tal como a irremediável mediação do avatar e, consequentemente, sua centralidade neste mundo. Não por acaso, a relação sujeito - avatar torna-se facilmente fetichizada e isso explica em grande medida a propensão ao exagero sentimental.

Em todo o caso, visões alternativas existem e se desenvolvem a partir da experiência, de acordo com a trajetória e atividades desenvolvidas pelo residente RL/SL e, fundamentalmente em função dos respectivos capitais sociais que cada um leva consigo. Artistas, cientistas, intelectuais estão entre os grupos que visivelmente assumem posturas alternativas, muitas vezes críticas, mas não necessariamente dissidentes em relação à ética romântica. Ao contrário, podem muitas vezes aprofundar o ethos romântico, na direção de suas vertentes estéticas e filosóficas mais radicais e até polêmicas, usando táticas e poéticas mais singularizadoras nas relações com seus avatares e com os objetos que criam. De um modo geral, suas criações e atitudes refletem uma preocupação constante com a busca de uma uniqueness.

De fato, uma questão importante neste mundo é a construção da distinção (Bourdieu, 1979) a partir do exercício do gosto e das práticas de singularização que ele pode promover, começando pelo próprio avatar, objeto privilegiado desses investimentos estéticos singularizadores. A aparência do avatar é o cartão de visitas do residente sob vários aspectos, na medida em que reflete suas intenções neste mundo. Neste sentido, pode haver também um paralelismo com a RL e o resultado disso é uma relação
de tal ordem intensa com o avatar que ele acaba sendo investido pelo próprio dono de "vida e vontade próprias". Sob este aspecto, o SL é um laboratório onde entre muitas coisas podemos observar de modo privilegiado o fenômeno do fetichismo. Voltarei a este ponto mais adiante.

Diante disso e dependendo de seus objetivos, o residente é posto frente a um dilema: ou bem ele aprende a lidar e a controlar os efeitos deletérios desse fetichismo, ou acaba por sucumbir inteiramente a ele. Não raro a segunda opção ocorre, da mesma forma que, não raro, a primeira opção exige medidas preventivas. O fato é que, diante deste dilema, os residentes aprendem a operar com duas lógicas ao mesmo tempo: a da separação e da hibridização.

A primeira lógica está relacionada à proteção de suas vidas reais. Para muitos, uma questão que se impõe como condição mesma para se manterem no SL é a de preservarem suas RLs, não permitindo que a segunda vida ultrapasse as fronteiras digitais e comprometa seus vínculos e posições sociais reais, bem como suas atividades. Em muitos casos, torna-se necessário preservarem o anonimato de suas identidades reais, o que vem a ser uma negociação sempre muito delicada, tensa, cujo equilibrio e controle estão sempre sendo ameaçados, exatamente pelo fetichismo que a relação com o avatar acaba impondo (especialmente exacerbados quando há relacionamentos afetivos em jogo, promovidos e mediados pelos avatares).

As duas lógicas decorrem exatamente desta experiência comum de em algum momento todos, sem exceção, se depararem com o fetichismo de seus próprios avatares, isto é, com a aparente vontade própria que eles parecem adquirir e que faz com que as posições todas se embaralhem no decorrer das interações: as pessoas passem a agir como coisas, enquanto as coisas-avatares assumem os lugares das pessoas.

Algumas pessoas percebem mais rapidamente do que outras que nem sempre estão no comando da situação em relação aos seus próprios avatares e ao modo como eles agenciam e mobilizam seus próprios desejos. De login em login, as externalidades do fetichismo se tornam por demais evidentes, até porque a maior parte dos conflitos entre residentes - e eles acontecem com bastante frequência e virulência - são motivados por disputas que envolvem seus avatares como protagonistas principais.

A propósito dessas disputas e conflitos a "magia do avatar" é um fato e se ela nos remete para alguma região concernente a nós mesmos, não tem nada a ver com a nossa boa consciência moral, mas sempre com nossos desejos. Somos ali sempre "traídos pelo desejo" por intermédio dessas criaturas. Isto é fascinante e pode-se aprender bastante sobre si mesmo com esta experiência, mas é também assustador, e a maior parte das pessoas não consegue encarar, embora esteja brincando
com o fogo todo o tempo. Acabam por naturalizar tudo ou então saem fora frustrados com o programa.

Mas nem tudo são dramas, pois há aqueles que conseguem equacionar muito bem suas duas vidas. Entre as várias alternativas observadas tem o grupo que denominei de "os amigos do Preedy". São aqueles que parecem ter entrado no SL com o livro de Erving Goffman debaixo do braço. Estes residentes invocam menos um EU profundo ou sentimental e operam mais com idéias como ator, personagem, papel, performance. Eles exercitam conscientemente aquilo que Goffman discute no capitulo VI de A representação do Eu na vida cotidiana - a arte de manipular a impressão como algo constitutivo do jogo social. O resultado desta perspectiva é que não naturalizam as relações com suas criaturas e por isso acabam tirando um proveito criativo e reflexivo
maiores da estranheza que suas experiências com elas propiciam.

Nestes casos, não creio que o fetichismo seja um obstáculo, mas uma questão filosófica a ser enfrentada no "jogo". Alguma coisa que nos obriga a lembrar que enquanto "jogo", o SL oferece um ponto de vista privilegiado sobre a vida social.




2 comentários:

  1. Oi Laura, dentro do seu blog, o meu assunto favorito sao os avatares. Vi a sua colocaçao sobre o Goffman como uma especie de "caminho" para alguns participantes do jogo nao misturarem tudo com a RL. Lembro sempre das idealizaçoes do "eu" que muito me chamaram a atençao numa materia que li ha muito tempo sobre SL. Ou seja, ali, eh o lugar onde realiza-se o "eu" que se quer ser. E aih, voltando ao Goffman, aquele "eu" representado eh, na verdade, o mais verdadeiro eu, segundo o autor. Esse "jogo de espelhos" (tlvz mais para Dorothy de Oz do que Alice... rsrsrsrsrsrsrs)eh o que tlvz torne o ambiente do jogo ainda mais interessante do que a RL. E esse pode ser o perigo, pois,ao contrario de Dorothy que volta aliviada para casa, alguns avatares podem se sentir mais confortaveis lah dentro.
    Sao soh algumas sinapses que o seu post me desencadeou...
    Adoro qdo vc escreve sobre avatares. Bjs. Solange

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  2. Pois é, Solange, para mim pairam muitas dúvidas se o "eu" idealizado no SL consiste no "verdadeiro eu". Também tenho muitas dúvidas se a estas alturas podemos invocar um eu verdadeiro em quaisquer circunstâncias. Essa é a premissa romântica, mas acho que o que está em questão nos tempos atuais é exatamente este EU. Mas vc tem razão é um tema fascinante e eu voltarei a ele muitas outras vezes porque o material para reflexão é imenso. De toda a forma, aguarde minha "conversa" com seu blog. Estou preparando uma série que se chamará Pelas ilhas e inventários rsssss Estou organizando o material a respeito. Tá vendo, como isso pode dar um bom samba RL/SL? Bom carnaval pra você! Bjos!

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