[...]Cena 1: Numa manhã fria e ensolarada de outubro de 1985, John Whittaker entra em seu gabinete do prédio de biologia molecular do Instituto Pasteur em Paris e liga seu computador Eclipse MV/8000. Alguns segundos depois de carregar os programas especiais por ele concebidos, brilha na tela uma imagem tridimensional da dupla hélice de DNA. John é cientista da computação, convidado pelo Instituto para trabalhar na criação de programas capazes de produzir imagens tridimensionais das hélices de DNA e relacioná-las com as milhares de novas sequências de ácido nucléico despejadas todos os anos em revistas e em bancos de dados. "Bela figura, heim?, diz seu chefe Pierre, que acaba de entrar no gabinete. É ... boa máquina também", responde John. [...]
(Bruno Latour, introdução à Ciência em Ação)
Aparentemente a citação acima não tem relação alguma com os assuntos tratados aqui ou no Second Life. Mas a leitura de um texto para finalidade acadêmica pressupõe interpretá-lo também para além do contexto imediato ao qual se refere, tendo em vista a possibilidade de ele vir a iluminar outros contextos de pesquisa. O processo de conhecimento opera por aproximações, por analogias e metáforas.
No caso da citação em questão, Latour inicia seu livro evocando a imagem de Jano bifronte para dizer que "a ciência possui duas faces: uma que sabe (ou se julga pronta) e outra que ainda não sabe. Ficaremos com a mais ignorante" (Latour, 1998:21). Com esta imagem ele diz que a face direita representa a "ciência em construção", portanto, representa o lugar das incertezas, dos problemas a serem postos, recolocados, o lugar também de muitos erros, de muito trabalho, de muitas decisões a serem tomadas, o que implica muita concorrência entre os próprios cientistas e, sobretudo, muitas controvérsias envolvendo outras agências e atores sociais.
Assim sendo, o trabalho do cientista não é exatamente uma atividade idílica, não se resume aos "acertos", às "aquisições", "achados", às respostas ou às chamadas "invenções", "descobertas" e inovações, tudo isso realizado sob um suposto clima de harmonia que caracteriza a vida contemplativa. A ciência não deixa de ser uma opção pela vida ativa e, como tal, ela se deixa contaminar pelos contratempos da vida mundana, especialmente e quanto mais ela esteja interessada nos fins objetivos e práticos que visam uma intervenção no mundo, seja para transformá-lo, seja na forma da criação de artefatos materiais e imateriais ou mesmo construir afirmações válidas sobre a realidade deste mundo.
Ao mesmo tempo, ciência também é linguagem e no caso de quem a pratica é a chance que se tem para se investigar o próprio pensamento e não apenas buscar soluções práticas para os problemas do mundo objetivo. Mesmo uma perspectiva mais voltada para este fim exige que prestemos atenção ao percurso realizado, isto é, ao conjunto de procedimentos desenvolvidos até termos alcançado os objetivos desejados. Muitas vezes, mesmo quando os resultados objetivos e práticos não são atingidos, o esforço terá valido a pena, especialmente se ele foi capaz de levantar outros tantos problemas que aparentemente não teriam sido possíveis de serem formulados e que, portanto, conduzirão a outras pesquisas. Enfim, a ausência de "resultados" em uma investigação científica é sempre muito relativa e não significa fracasso ou erro, mas na maioria das vezes um adiamento em troca de mais refinamento teórico-conceitual e metodológico.
É nesses termos que, para mim, o SL é um Laboratório, um contra-laboratório e uma caixa preta, tudo ao mesmo tempo de acordo com Latour. Ele é o lugar onde posso pensar, observar e participar de alguns problemas que a tecnologia digital vem colocando para todos nós, seus usuários. Ao entrar neste laboratório não me impus necessaria e prioritariamente um objetivo prático, de caráter utilitário, embora não os tenha perdido de vista, pois eles existem. Perguntas do tipo - afinal, para que serve o SL? - não fazem muito sentido para mim, apesar de ter minhas teorias a respeito e pretender escrever sobre elas. Meu objetivo principal é de longo prazo e consiste em explorar essa interface tomando como base minha própria experiência com ela para formular questões sobre o fazer antropológico e o ensino da antropologia, em uma situação de mudança cultural, na qual a vida digital passa a ser cada vez mais parte da vida real.
Mais ainda, meu objetivo é poder acompanhar de perto as inúmeras controvérsias criadas quando reunimos em um mesmo ambiente, cientistas e seus experimentos, designers & criadores de conteúdo, engenheiros e tecnólogos funcionários de uma empresa que não pode deixar de lucrar, e, não menos importante, usuários - cobaias para uns e clientes para outros - que no meio disso tudo muitas vezes vêm suas expectativas frustradas.
Por controvérsias, entendo algo simples: conflitos (inclusive de interesses), polêmicas. E para quem sabe que não se chega a nenhum conhecimento válido sobre o mundo sem passar por ambos, o SL é um lugar perfeito onde eles não faltam, estão por toda a parte a estimular reflexões não apenas sobre um determinado mundo virtual, mas também sobre o mundo que muitos de nós viveremos em futuro próximo.
Meu amigo Bruno Lisboa, fotógrafo e pesquisador da imagem sabendo que tenho um apreço especial por controvérsias e polêmicas, especialmente aquelas que se desenrolam no nosso laboratório, me enviou o link de um video que postei aqui. Ele veio em boa hora para, de forma bem humorada, ilustrar uma das muitas controvérsias existentes no SL sobre o estatuto da imagem e, consequentemente, da criação e do processo criativo neste mundo virtual digital que depende quase que totalmente de cópias digitalizadas de imagens do mundo real para se (re)produzir enquanto tal. Infelizmente, o video, como parte de uma controvérsia maior que diz respeito à cultura digital como um todo foi retirado do Youtube por infringir direitos de propriedade.
Substituo-o, então, por um video de Bruno Latour apresentando o projeto Mapping Controverses - The Demoscience Project.
Mapping Controversies - The Demoscience Project from medialab Sciences Po on Vimeo.
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