segunda-feira, 29 de março de 2010

Okatu IV

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Quando decidi fazer a quarta versão do Okatu, fui buscar minhas referências e inspiração em Gilberto Freyre, muito especialmente em Casa Grande & Senzala. Eu queria fazer um engenho de açucar que trouxesse para o ambiente virtual 3D um pouco da força poética da narrativa freyriana. Por se tratar de um projeto mais ambicioso do que o anterior, solicitei a ajuda do builder Nando Yip que, além de designer é também na vida real um artista das artes cênicas. Com sua sensibilidade, Nando soube captar muito bem em imagens o caráter performático da escrita de Gilberto Freyre.

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Casa Grande & Senzala foi um dos livros que li em minha juventude e que me fizeram desejar estudar ciências sociais. Foi através dele que aprendi a olhar meu país de uma forma diferente, conferindo a ele um lugar singular no concerto das nações.

Fundamentalmente, Gilberto Freyre me mostrou que o dilema brasileiro não consiste em nenhuma "inadequação" atávica de nossa sociedade em face da modernidade, mas muito mais na recusa em abrir mão de princípios que orientaram a nossa fundação enquanto tal. Se, por conta disso, o Brasil veio a se tornar uma espécie de "caricatura" da modernidade, devo dizer que caricatura não significa algo necessariamente negativo, podendo ser também uma forma de crítica, de contra-discurso.

Em suma, minha teoria aprendida com este mestre é que NUNCA FOMOS MODERNOS pelo fato de sermos incapazes, ou mesmo por tratar-se de um destino, mas PORQUE NUNCA DESEJAMOS SER DE FATO MODERNOS, isto é, nunca nos convencemos totalmente das proclamadas virtudes políticas modernas para uso próprio.

Enfim, não fizemos aquela "escolha" que povos e nações considerados modernos fizeram em determinados momentos de suas histórias. Decidimos não arcar com certos compromissos, responsabilidades, consequências e os custos que uma "decisão" ou "escolha" pela modernidade implicou para essas sociedades. Mais ainda, simplesmente nos recusamos a abdicar de nosso passado ou mesmo varrê-lo para debaixo do tapete (cf a feliz expressão usada por Richard Morse), como muitas fizeram, mesmo que a um preço elevadíssimo.

Como bons fetichistas, adoradores de ídolos, paramos em nossa travessia no meio do deserto. Ali decidimos permanecer, fincamos nossas raízes com nossas pátinas, embora elas não tenham nos impedido de adotar as modas. Contudo, parte de nosso dilema não advém de termos ficado no meio do caminho apenas, mas de não darmos nenhum outro sentido tático a esta atitude de reserva e desconfiança diante do mundo moderno.

Independente de não concordar com muitas teses de Gilberto Freyre, creio que sua obra nos deixou algumas lições fundamentais: a primeira delas é que ele foi um pioneiro em relação às noções de híbridos, hibridismo, hibridizações tão celebradas nos dias de hoje; a nosso respeito, sempre declarou que a nossa condição híbrida não se reduzia à mestiçagem dos corpos somente, mas a tudo, desde crenças, valores, coisas e modos de vida. A segunda lição é que como híbridos, de fato, fomos jogados para a periferia do sistema ocidental, por aqueles que se julgam autenticamente ocidentais e modernos. Entretanto, um aspecto considerado por Freyre é que isso nos fez seres da fronteira e nos obrigou a olhar para as bordas desse mundo como partes constitutivas de nós mesmos, o que acabou nos conferindo um universalismo bem mais interessante e interessado do que o da dita cuja modernidade ocidental. Finalmente, a terceira lição é que talvez haja alguma virtude nisso tudo.

(...) A formação patriarcal do Brasil explica-se, tanto nas suas virtudes como nos seus defeitos, menos em termos de ´raça´ e de ´religião´ do que em termos econômicos, de experiência de cultura e de organização da família, que foi aqui a unidade colonizadora (...)
(...)A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro: de sua vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e polígamo...Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos aos poucos nos completar: é outro meio de procurar-se o ´tempo perdido´. (...) É um passado que se estuda tocando em nervos; um passado que emenda com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos(...)
(Gilberto Freyre, prefácio à primeira edição de Casa Grande e Senzala)

vista geral

Observação final: O Okatu IV não é apenas uma homenagem ao autor de Casa Grande & Senzala. É um lugar para visitação (ainda não está aberto, mas muito em breve estará) e um lugar onde pretendo desenvolver atividades relacionadas ao ensino da antropologia. Sejam bem vindos!

sábado, 13 de março de 2010

De volta ao Okatu III: digital nature e sim cities

...A influência dessa colonização litorânea, que praticavam, de preferência, os portugueses, ainda persiste até aos nossos dias. Quando hoje se fala em "interior", pensa-se, como no século XVI, em região escassamente povoada...
...A fisionomia mercantil, quase semita, dessa colonização, exprime-se tão sensivelmente no sistema de povoação litorânea ao alcance dos portos de embarque, quanto ao fenômeno, já aqui abordado, do desequilíbrio entre o esplendor rural e a miséria urbana...
(Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil)
Usar categorias como digital nature e sim cities para compreender espaços e ambientes virtuais em 3D, como o SL pode parecer um disparate para alguns, mas não deixa de fazer sentido diante de certas circunstâncias empíricas que se apresentam. Entre julho e novembro de 2008, dos 58 sims (estrangeiros e brasileiros) visitados por mim, 22 apresentavam um cunho claramente ambientalista. Em sua maioria absoluta tratavam-se de sims estrangeiros com recriações do "mundo natural" - o que justifica o uso de expressões como digital nature ou second nature. Os atributos levados em conta por mim para tal classificação foram os trabalhos de terraform (ferramenta que define a topografia do terreno), tipos de vegetação usados, existência e incidência de objetos como montanhas, rochas, cavernas, grutas, cachoeiras, rios, lagos, além de outros objetos e das próprias texturas utilizadas de terra, barro, pedras, até mesmo os efeitos sonoros. Dos 36 que sobraram, 7 foram excluídos por não se incluírem em nenhuma das duas categorias.

Os 29 restantes foram incluídos como sim cities. Os critérios para esta classificação foram o fato de serem "cidades" (não aldeias) construídas com equipamentos característicos desses ambientes, desde grandes conjuntos arquitetônicos, pontes, muralhas, muros, até traçados de ruas com texturas denunciando a urbanização como asfalto, ou outras formas de pavimentação etc, além do predomínio da área construída sobre a área total do terreno.

Nos sim cities estrangeiros pude observar alguma variedade entre eles, pois havia aqueles que eram recriações de cidades reais, algumas em momentos históricos específicos, como a Roma Imperial ou a Paris de 1900, ou a contemporânea New York de CSI, enquanto havia outros que não pretendiam ser recriações de cidades reais, apenas cidades imaginadas. Nesta segunda subcategoria constatei existir um filão bastante rico de sim cities que apresentavam igualmente uma proposta crítica e ambientalista de valorização estética de ambientes degradados, onde os visitantes eram defrontados com as marcas visíveis do abandono, da sujeira e do lixo.


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A experiência de imersão nessas paisagens e a força poética delas, tanto nos nature quanto nos sim cities é por demais eloquente e vale a pena o esforço de analisá-las detidamente. Elas podem nos dizer muito sobre o nosso futuro, não necessariamente apocalíptico, mas no que diz respeito ao ressurgimento da velha oposição campo (lugar das antigas virtudes) versus cidade (lugar dos vícios e da desordem) e de sua influência no processo de globalização dos movimentos sociais. É bom que se diga que a globalização a qual me refiro não diz respeito apenas às instituições, valores e práticas do capitalismo neoliberal, mas inclui todas as suas externalidades e consequências políticas, incluindo os movimentos sociais e suas respectivas controvérsias em torno das questões ambientais.

O estudo da paisagem no Second Life demonstra isso cabalmente, tornando esta plataforma um posto de observação importante, justamente por causa da forte presença deste imaginário ambientalista, bem como da carga persuasiva que ele traz consigo em termos morais e estéticos. No meu entender, esta presença só corrobora e reafirma a crise de representação que está em marcha desde as últimas décadas do século XX sobre noções como espaço, território e ambiente. Como não poderia deixar de ser, a cidade moderna e a utopia da metrópole estão no centro desta crise.

Mas o que dizer dos sims brasileiros? A grande maioria deles não se inseria na categoria digital nature
(somente um foi classificado nela, a ilha Mata Atlântica), mas fazia parte do universo dos 29 sim cities. Entretanto, diferentemente dos sims estrangeiros nesta categoria, nosso repertório urbano se restringia praticamente às "cidades litorâneas", mesmo que em diferentes escalas. O exemplo emblemático deste poder de representação foram as MLBR criadas pela Kaizen Games inspiradas no Rio e na praia de Copacabana que, durante um bom tempo foram os principais pontos de entrada, chegada e de encontro de avatares brasileiros no SL. A Avenida Paulista e as ilhas dedicadas à Curitiba que vieram depois procuraram fazer algo diferente, mas nada se comparou às MLBR Copacabana, na condição de modelo principal para as demais ilhas brasileiras que se seguiram.

Quanto aos usos do espaço, mais uma vez as "favelas" foram as grandes exceções. Foram elas que cumpriram a função simbólica de serem naquela época, praticamente, a única alternativa aos arranjos mercadológicos que orientavam a construção e as lógicas de ocupação da maioria das ilhas brasileiras. De fato, em 2007 e 2008 muitos nerds achavam mais divertido e interessante se logarem para empunharem armas (gigantescas e fálicas) e replicarem os combates diários existentes nas favelas reais cariocas, de acordo com o noticiário da época, do que irem a festas convocadas por promoters. Ao contrário dessas outras lógicas de ocupação influenciadas pelo marketing e pela mídia (impressa e televisual) via-se claramente que as favelas foram inspiradas em filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite.

Mais isso não é tudo. Examinando melhor as sim cities brasileiras cheguei à conclusão de que mesmo com suas fachadas modernas ou pós-modernas, elas punham em evidência um modelo bem mais arcaico de ocupação e urbanização do espaço, ao qual Sérgio Buarque de Holanda denominou de "feitorização". A ausência praticamente de sims dedicados ao mundo natural ou mesmo de projetos com preocupações ambientalistas reafirmou para mim a vigência das representações tradicionais existentes em nossa sociedade acerca da natureza, em função do modelo de colonização portuguesa que sempre privilegiou as feitorias litorâneas e dificultou o acesso ao interior de nosso território.

Não por acaso, a "praia tropical" se erigiu como o representante soberano da "natureza brasileira", por excelência (e isso não apenas no Second Life), o que não ocorreu com a floresta ou a mata, ou outros ambientes naturais, como o pantanal, o cerrado e o próprio sertão entre outros.

Foi neste contexto que a terceira versão do Okatu foi construída, desta feita em um espaço reduzido a 3.500 prims somente, devido às bruscas mudanças de orientação na "política fundiária" da Linden Lab. Com base nas observações efetuadas nos 58 sims, decidi que a ilha seria totalmente construída e arranjada por mim, muito embora eu tenha reaproveitado parte do acervo dos Okatus anteriores. Orientando-me pelo autor que me inspirava naquele momento, não segui um plano prévio ou sequer preciso.
Como nas antigas feitorias, lancei-me ao improviso, pois esta parecia ser, por herança, a marca registrada da participação brasileira no metaverso.

...A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, a sua silhueta se enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra "desleixo" - palavra que o escritor Aubrey Bell considerou tão tipicamente portuguesa como "saudade" e que, no seu entender, implica menos falta de energia do que uma íntima convicção de que "não vale a pena"...
(Sergio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil

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