domingo, 26 de dezembro de 2010

Orgulho e Preconceito

"Não é pelo fato de julgarmos uma coisa boa, que nos esforçamos por ela, que a queremos e a desejamos, mas, ao contrário, é pelo fato de nos esforçarmos por ela, por querê-la, por desejá-la, que a julgamos boa". Espinoza, Ética, parte 3, prop. 9.
“Você é as suas sinapses, e elas são o que você é” (Joseph LeDoux, neurocientista)

Pride and Prejudice de Jane Austen é um dos romances mais lidos do mundo. Escrito ainda no final do século XVIII ele narra as vicissitudes e empenho da jovem Elizabeth Bennet, filha de um proprietário rural inglês, às voltas com seu projeto de construir para si uma “vida feliz”, tendo que lidar com as limitações morais, culturais, com a educação e os costumes de seu tempo. Sob vários aspectos, o título e o enredo do livro se aplicam muito bem ao que pretendo desenvolver neste último post de 2010.

Até o século XVIII o gênero romance foi considerado inferior no mundo ocidental. Mais ainda, ele era apontado pelas “autoridades” (leia-se todos aqueles a quem era dada a prerrogativa de enunciar as verdades sobre o mundo) como um hábito feminino próximo do vício, moralmente condenável, uma vez que desviava a atenção das mulheres de suas "verdadeiras" funções sociais. Foi preciso um escritor do calibre de Gustave Flaubert para criar um caso com essas mesmas autoridades (clero, educadores, médicos, moralistas de plantão etc) e mudar definitivamente os rumos dos acontecimentos.

A principal arma usada por Flaubert foi ele próprio escrever um romance, Madame Bovary, no qual o “desejo” (uma categoria cara aos psicanalistas) encarnado na figura de sua personagem principal (Ema Bovary) é apresentado desde já como sendo o eixo fundamental para o entendimento do indivíduo moderno, provocando assim o maior escândalo literário da sociedade francesa. Por quê? Ema com seu jeito gauche de ser, e apesar de seu final trágico, já era definitivamente uma mulher dos tempos modernos. Para o bem e/ou para o mal, ela é o protótipo do consumidor moderno, com todo o seu hedonismo, vícios e virtudes.

Neste romance, Flaubert mostra também que o consumidor moderno se distingue do consumidor tradicional, exatamente pela busca incessante desta qualidade da experiência – o prazer elusivo – que as coisas e os objetos possuem, diferentemente da satisfação imediata obtida pelos sentidos (Campbell, 1988). Não por acaso, o livro de Flaubert, publicado em 1857 é considerado o primeiro romance realista. Seja como for, apesar do processo e julgamento que enfrentou, a partir de sua personagem Ema ("Emma Bovary c'est moi"), não houve mais dúvida acerca da legitimidade literária do gênero romance. De fato, desde então, este gênero deixou de ser percebido como um mero passatempo feminino de obtenção de prazer conspícuo, tornando-se parte integrante da cultura erudita ocidental.

Quando li estes dois romances pela primeira vez eu era ainda muito jovem e a leitura de ambos foi fundamental para a minha formação, para minhas escolhas a respeito de dois aspectos essenciais de minha vida adulta. A primeira delas foi quanto ao quesito profissão: eu descobri que realmente gostava muito de ler e escrever, e que era totalmente dependente deste objeto chamado “livro”. Então eu soube, desde então, que estaria fadada a escolher algo no qual leitura e escrita, não apenas estivessem presentes, mas fossem obrigatórias!

A segunda escolha, corolário da primeira, é que evidentemente não poderia viver entre pessoas que não apreciassem ou valorizassem meu gosto pela leitura e a escrita, logo a questão do casamento, por exemplo, das amizades e sociabilidade passou a ser um problema na minha vida, embora não desejasse ficar solteira ou solitária. Felizmente posso dizer que tive muita sorte em minha vida, o que não elimina de modo algum as dificuldades e os preconceitos que tive de enfrentar.

Poderia estender essas considerações ao cinema e à televisão também. Lembrar que em suas origens ambos possuiam má fama e estavam relacionados às mulheres e pessoas de caráter duvidoso ou alienadas, até terem sido escolhidos pelo governo norte-americano para promoverem a cultura de massas e a assimilação de milhões de imigrantes que deveriam ser integrados àquela nação. Para muitos estudiosos do cinema, não foi por acaso que Hollywood se tornou a base da mais importante indústria dos EUA, aquela através da qual eles vêm exercendo de modo mais eficaz sua influência cultural no mundo contemporâneo.

Finalmente, chego ao ponto onde queria chegar. Eu falei aqui de romance (literatura), consumo, cinema e, evidentemente podemos juntar a esta lista a própria rede, a internet. A cada dia que passa fica mais difícil para cada um de nós delimitarmos as fronteiras entre on/off line, na mesma proporção que cada vez menos dependemos de suportes físicos como os antigos PC´s. Hoje, a quantidade de dispositivos e objetos que nos garantem a conectividade imediata é uma evidência empírica incontestável de que “algo” mudou profundamente e continuará mudando em relação à nossa condição de sujeitos.

As conseqüências deste fato são ao mesmo tempo drásticas e dramáticas, especialmente para áreas e domínios inteiros da vida social que fundaram e validaram seus poderes e formas de autoridade a partir da noção cartesiana de sujeito. Quero dizer com isso, que os próximos anos nos reservam grandes controvérsias a respeito da cultura digital. Um exemplo são as inúmeras pesquisas cujos resultados comprovam de forma constrangedora que não existe muito consenso em relação a vários aspectos dela. Ainda recentemente, o episódio Wikileaks demonstrou cabalmente que estamos navegando perigosamente em águas turvas, sob a ameaça de tempestades como controle, censura e criminalização.

O pior de tudo é que elas podem desabar por aqui em nossa democracia sempre tão relativa e precária. E tudo indica que um dos alvos privilegiados seja também a nossa participação nos “mundos virtuais”. Sempre achei estranho o fato de “a morte do Second Life” ter sido anunciada inúmeras vezes pela nossa mídia, a despeito de seu desenvolvimento tecnológico e crescimento econômico. No momento atual começo a perceber que o discurso da “morte” começa a ser substituído por outro bem mais problemático, desta vez apoiado no discurso médico do “vício” e da drogadição. O interessante é que um dos argumentos apresentados diz respeito ao aumento da dopamina nos usuários durante sua imersão. Ora bolas, eu poderia aqui listar várias outras atividades que mobilizam nossos sentidos, emoções e subjetividades provocando os mesmos efeitos de aumento de nossos neurotransmissores e sinapses!

Poderia citar muitos exemplos, mas creio que o argumento de que o simples aumento de uma substância no organismo não caracteriza o "vício" seja suficiente neste momento, tornando-se necessário considerar as circunstâncias sociais e culturais nas quais este aumento ocorre e os próprios indivíduos em pauta. No caso dos mundos virtuais seria preciso conhecer ainda muitas outras dimensões da vida do usuário para pensarmos nesta possibilidade, especialmente saber se ele possui ou desenvolve atividades produtivas ou criativas especiais envolvendo formas de recompensas em termos de reconhecimento, prestígio ou mesmo financeira naquele ambiente. A meu ver, esta perspectiva da drogadição precisa ser considerada com muita reserva, porque corre o risco de não explicar nada e apenas corroborar a consolidação de mais um preconceito que visa a construção de uma fronteira moral e ideológica que provavelmente esconde interesses corporativos e institucionais (políticos) bem reais.

Deixo aqui, portanto, meu registro contra esta visão ligeira e que nada contribui para esclarecer o que são os mundos virtuais e os modos de interação que eles instituem. Aproveito para evocar uma cena significativa do belo filme de Laís Bodanzky, Bicho de sete cabeças, uma história sensível e realista sobre uma receita doméstica rápida e cruel de como produzir um doente mental em uma sociedade com viés autoritário como a nossa, por uma instituição psiquiátrica, muita droga (a droga dos laboratórios) e a ignorância de uma família.



Obs. final: seria importante que as "autoridades" e a mídia se informassem melhor sobre esta controvérsia dos jogos como drogadição. Segue novamente um link de Bruno Latour a respeito.


sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Os mundos virtuais e a "nova economia"

Recentemente um amigo, professor de antropologia, igualmente interessado em cibercultura enviou-me este link pelo facebook. Ele me perguntava se estava a par deste fato. Disse que não estava, mas que não me surpreendia com ele. Afinal de contas, no Second Life havia me acostumado a ver pessoas e seus avatares gastarem fortunas em compras/aluguéis de ilhas, objetos variados, da mesma forma que sabia de outras que ganhavam bastante dinheiro lá dentro, revendendo/alugando ilhas, terrenos, criando e vendendo objetos, construindo, prestando diversos tipos de serviços etc.

Assim, não me foi difícil compreender os argumentos de Yan Panasjuk, o homem que comprou uma casa noturna em Entropia, um mundo virtual, por 335 mil dólares. Entretanto, não deixei de ficar bastante surpresa com o tratamento no mínimo “escandaloso” dado ao assunto, bem como os comentários feitos por leitores brasileiros de um blog, supostamente voltado para um público interessado, envolvido, antenado, consumidor de tecnologia digital e games em geral.

Isso me deu uma medida das representações coletivas e dos limites a respeito da cultura digital no Brasil. Mais ainda, me chamou atenção o fato de os leitores e comentadores do post, supostos usuários experientes, aparentemente não terem feito qualquer relação entre as mudanças profundas em curso na economia contemporânea e a cultura dos jogos, conforme destaca Yan Panasjuk em sua rápida explicação à revista Forbes que o entrevistou a respeito de seu “insólito” negócio.

Tudo isso me trouxe de volta à memória os comentários de Flaubert sobre o longo processo e julgamento movido contra ele por causa da publicação de Madame Bovary. Passei a imaginar como ele reagiria se pudesse voltar aos tempos atuais. Certamente, com sua profunda ironia, ele diria que seus adversários fizeram muito barulho para nada, já que sua personagem constitui hoje o padrão do consumidor médio moderno, aquele que é a meta comum de todas as empresas e organizações no mundo contemporâneo, com o detalhe de que o endividamento de Ema já é percebido consensualmente como comedido e conservador para os padrões atuais.

Cheguei a cogitar em postar um comentário no blog, mas pensei melhor a respeito e percebi que não valeria à pena, porque não é meu objetivo desenvolver qualquer forma de militância sobre este assunto, apenas acompanhar as controvérsias que os mundos virtuais suscitam no âmbito da cultura digital entre os próprios nativos e usuários.

É importante esclarecer que minha referência à Flaubert também não passa pela consideração de que a compra/venda de um clube em Entropia seja uma expressão de "bovarismo" contemporâneo e digital, não é nada disso! Caso estivesse fazendo este tipo de avaliação, estaria concordando com os leitores do blog, o que não é o (meu) caso. Penso que as razões que envolvem a compra de um clube ou qualquer espaço em um mundo virtual é algo bem mais complexo do que se imagina e envolve outras concepções de "valor" que precisam ser mais e melhor investigadas do que simplesmente desqualificadas.

Por isso mesmo, achei mais produtivo postar aqui para os interessados e aqueles que acreditam que o Second Life acabou, os vídeos de uma palestra dada recentemente por Philip Rosedale, o criador do Second Life na qual, entre muitas informações importantes sobre os números atuais do SL, ele fala sobre o papel que os mundos virtuais vem desempenhando na “nova economia”. Vale à pena conferir.

No mais, desejo a todos um Feliz Natal e um Ano Novo com muitas trocas de bites, pixels e prims!




quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Pensando o Second Life como AVA

Peço desculpas por ter ficado tanto tempo sem postar por conta das urgências e necessidades da vida. Tive um segundo semestre de trabalho bastante puxado e somente agora começo a ter um pouco mais de tempo para retomar este blog. Entretanto, devo dizer que minha “segunda vida” continuou firme, muito embora as imersões tenham sido também espaçadas. Uma das atividades que desenvolvi durante este tempo no SL foi investir em meus sims para prepará-los como AVAS (ambientes virtuais de aprendizagem) para usar em futuro próximo. O que significa isso?

No ano passado recebi uma proposta para participar de um programa de EAD, fiquei animada e comecei a me integrar ao grupo. Para começar, fiz um curso de Moodle, a plataforma usada pela equipe e na maioria dos cursos de EAD no Brasil. Mas aí aconteceu o que suspeitava: em função de minha experiência com o SL fiz algumas restrições ao Moodle e isso me obrigou a refletir sobre o assunto. O resultado foi a decisão de mergulhar mais fundo nas diferentes possibilidades de utilização do SL como ambiente de aprendizagem e de conhecimento.

Meu ponto de partida foi tentar distinguir duas vertentes da EAD em vigor no Brasil: a primeira e a mais difundida é aquela que fundamentalmente a concebe como alternativa para se suprir a demanda por escolaridade no país e, neste caso, ela é quase sempre pensada como uma transposição e adaptação da relação pedagógica tradicional para o meio digital; a segunda, bem menos difundida é aquela em que a EAD é concebida a partir de um novo conceito de educação e aprendizagem, por sua vez vinculado a uma perspectiva construtivista do conhecimento baseada nos princípios de compartilhamento, de colaboração e de cooperação (essas palavras podem parecer sinônimas, mas não são particularmente no SL).

A primeira concepção traz à tona impasses e dilemas importantes, porque se a EAD ainda se apresenta como uma alternativa possível para um conjunto maior de usuários que não tiveram acesso à escolaridade, ela fica limitada também a algumas poucas plataformas e, no caso, o Moodle acaba sendo a mais conveniente, apesar de suas limitações. Mas se estamos pensando em termos da 2ª concepção e de um uso mais abrangente das TIC´s, não apenas em programas de EAD voltados para suprir deficiências, mas como recurso pedagógico corrente no próprio ensino escolar presencial, o uso de determinadas plataformas precisa ser revisto.

Este é o caso do Second Life. Nesses três últimos anos tenho acompanhado as tentativas de grupos em promoverem o ensino à distância lá dentro, mas considero que com raríssimas exceções todos cometem o mesmo equívoco: o de tentarem replicar e simular os ambientes físicos escolares ou universitários presenciais e até mesmo suas formas de interação social!

Não adianta. Avatar residente que se preza não vai ficar sentado “assistindo” a uma aula dada por um suposto avatar-professor, numa réplica de sala de aula, durante um semestre ou um curso inteiro. Se isso já não funciona muito bem no ensino presencial, não funciona na internet, especialmente numa plataforma 3D.

No segundo dia, o “aluno” já põe seu avatar-aluno, muito possivelmente um ALT conectado a um programa de copybot e se manda ou veste seu avatar principal para fazer coisas mais interessantes pelo SL! Nunca será tão fácil matar aulas e nunca teremos tantos alunos fantasmas! Todos BOTS!

A situação relatada acima é verdadeira e foi posta em prática por um aluno-avatar nos idos de 2008, “obrigado” a entrar no SL para fazer um curso pela sua faculdade. O que quero dizer com esta situação é que a atenção, o interesse, enfim, o engajamento para com a aprendizagem e o conhecimento deve e pode ser mobilizado por outras vias, que não através da entrada compulsória no programa e através da simulação de um ambiente escolar e de uma relação pedagógica tradicional.

Sem dúvida, essa fórmula de utilização do SL para a EAD está fadada ao fracasso. E a meu ver este fracasso começa quando não atentamos para os regimes de convivência que regem as relações entre usuários e seus respectivos avatares e os demais usuários-avatares. Em outras palavras, o SL possui uma cultura muito própria e os dispositivos disciplinares, de controle e normalização que definem e justificam a instituição escolar presencial fundada na racionalidade moderna não se aplicam neste ambiente.

Não existe receita para se usar o SL como AVA e talvez este seja o principal desafio a ser enfrentado por aqueles que se interessam em explorar esta plataforma para ensino & pesquisa. Sim, me parece que este par deve andar sempre junto, porque somente quando professores e alunos compartilham suas experiências no SL, quando cooperam e colaboram entre si é que conseguem criar conteúdos relevantes em suas respectivas áreas de conhecimento. Como escrevi em um post anterior, o SL está mais próximo de um Laboratório do que de uma sala de aula.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Trabalho de campo

Faz três anos e um mês que ingressei no Second Life para fazer minha pesquisa. Acho que é uma boa oportunidade para postar aqui um pequeno depoimento e balanço desta experiência de campo. Em linhas gerais, meu trabalho de campo teve duas fases distintas: uma primeira voltada para a observação dos modos de interação e sociabilidade, formas de produção, circulação e consumo de bens imateriais; uma segunda fase, consequência da primeira, sobre o caráter cognitivo e ético desta plataforma. De fato, ao me interessar pelo estudo da linguagem da plataforma e dos recursos cognitivos que ela oferecia, me defrontei com alguns dilemas éticos, cujos desdobramentos me deixaram interessada em acompanhar de perto. Assim, continuo a fazer meu trabalho de campo lá dentro, embora ele tenha assumido características bem diferentes da fase inicial.

Para estudiosos de outras áreas, três anos pode parecer tempo demais para se fazer uma pesquisa. Eu mesma, durante todo este período deparei-me com estudantes/pesquisadores de outras áreas que entraram no SL para fazer seus TCC ou mesmo dissertações de mestrado e que em algumas semanas haviam levantado tudo o que consideravam relevante, incluindo observações e a realização de muitas entrevistas.

Eu ficava pasma com tanta eficiência e objetividade, mas sabia que a qualidade de minha observação dependeria do tempo maior que pudesse despender em trabalho de campo. Era preciso ter paciência para ver, escutar, aprender, co-presenciar situações, anotá-las e, em seguida pensar a respeito delas, através do diálogo com a teoria antropológica. A menos que eu estivesse naturalizando muitas situações, tinha de ter cuidado para saber que, antes de quaisquer análises teria muito o que aprender e a observar ali. Desde o início percebi que o tempo poderia ser meu grande aliado.

Insisto na questão do aprendizado, porque considero este um aspecto fundamental da pesquisa de campo envolvendo tecnologia digital. Não se trata de preciosismo, mas é preciso ter em mente que ao fazermos pesquisa com a internet, qualquer que seja a nossa perspectiva, nossa investigação exigirá a escolha de uma plataforma ou interface como referência, a partir da qual construiremos o “nosso ponto de vista” sobre a rede.

Em termos sociológicos e antropológicos, uma visão genérica da rede e um discurso totalizante sobre “ciberespaço” e “cibercultura” não se sustenta mais e, nesse caso, a perspectiva etnográfica passa a ter maior vigência entre os antropólogos que trabalham com a rede. Em termos de estratégia de pesquisa, isso implica que a “entrada no campo” exigirá de nossa parte a aquisição de alguma familiaridade com uma dada plataforma e mesmo de alguma competência em relação a ela, no sentido de tê-la experimentado razoavelmente como usuários. Sem sombra de dúvida, considero que tornar-se usuário de fato de alguma plataforma é uma condição necessária para se fazer trabalho de campo com a internet.

No caso do Second Life esta discussão atinge outras proporções, pois tornar-se um usuário é mais que um visitante, mesmo que não se chegue a ser um residente, um nativo. Em outras palavras, para o antropólogo interessado em investigar este mundo virtual não basta conseguir entrar no ambiente, freqüentá-lo e interagir com os demais avatares, mas é preciso saber fazer as imersões com um certo grau de autonomia, isto é, saber alguma coisa a respeito do modo de funcionamento do sistema que sustenta este mundo virtual para não atrapalhar as imersões alheias com pedidos constantes de ajuda.

A etiqueta desta plataforma exige que após o nascimento do avatar, este se engaje por conta própria no aprendizado básico do sistema. Um fato que pude observar ao longo desse tempo foi ver avatares mais experientes bastante irritados com a negligência e a falta de interesse de outros mais jovens para aprenderem minimamente como lidar com as ferramentas do programa. Ensinar a usá-lo é uma tarefa importante que muitos residentes experientes levam a sério e se dedicam como uma espécie de missão, mas ela é diferente de colocar-se à disposição para demandas constantes, feitas sem critério e que revelam falta de compromisso para com o SL. Soa como uma espécie de indelicadeza e oportunismo para com aqueles que se empenharam e investiram boa parte de seu tempo de imersão no aprendizado do programa.

Sem dúvida, a experiência de um avatar se mede pelo "capital social" que ele acumula na condição de residente, mas também na capacidade que ele tem de agregar mais conteúdo e valor ao SL, contribuindo para o seu desenvolvimento e avanço enquanto plataforma. Isso inclui saberes e fazeres que não dizem respeito somente à construção e aprimoramento das criaturas, personagens (avatares) e suas respectivas redes de relacionamento, mas se referem à manutenção e reprodução daquele ambiente como um todo, algo que exige uma perspectiva colaborativa e um esforço coletivo constante.

Embora não haja ainda um conceito de "cidadania" e de "civilidade" plenamente desenvolvidos no Second Life, percebo que a noção de “residente” inevitavelmente caminhará nesta direção, ao supor cada vez mais um conjunto de obrigações e contrapartidas – explícitas e tácitas – da parte daqueles que desejam se instalar no SL para desenvolverem suas “segundas vidas”. Já foi o tempo em que estar ali apenas para divertimento ou fruição das vantagens do ambiente não constituía nenhum problema.

Hoje em dia, as externalidades desta postura descompromissada tornaram evidentes o caráter problemático e predatório dela, constituindo talvez o primeiro grande “problema social” do SL. Ao permitir uma “relação fraca” com a plataforma, a própria LL desobrigou os “visitantes” a terem qualquer compromisso ético com ela. O fato é que essas “relações fracas”, baseadas na idéia de que o SL é apenas um playground é o que em grande medida tem facilitado o seu uso para a prática de infrações e delitos digitais variados que acabam prejudicando a vida de tantos residentes que estão ali desenvolvendo sua criatividade. O que fazer?

AFOREST - SECOND LIFE - THE CURE VS BJORK from plastichansa on Vimeo.