"Sertão é o sozinho" "Sertão: é dentro da gente" "O sertão é sem lugar" (Guimarães Rosa, citações de Grande Sertão: Veredas)
A segunda versão do Okatu foi construída imediatamente após a primeira, em um pedaço de ilha contíguo. A idéia foi integrar os dois ambientes de modo que o visitante pudesse circular livremente por eles. A inspiração para a segunda versão foi o universo do sertão. O experimento consistiu em construir um povoado sertanejo, um vilarejo onde pudesse reunir algumas imagens de dois gigantes de nossa literatura - Euclides da Cunha (Os Sertões) e Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas, Primeiras Histórias).
Este foi um exercício que envolveu desafios maiores, pois naquela ocasião (2007-2008) ficou patente para mim que havia uma distância muito grande dos brasileiros em relação aos demais grupos do Second Life, no que diz respeito à criação/construção de objetos. Isso significa dizer que a maior parte dos objetos usados no projeto foram adquiridos de criadores estrangeiros. Em muitas situações foi possível adaptar (customizar) esses objetos, desde que fossem modificáveis, como no caso da versão final das ocas do Okatu.
Para quem se interessa por design digital e reconhece sua importância estratégica na construção e existência de mundos virtuais sabe que essa não é uma discussão de pouca importância. Sabe também que em termos de plataformas como o Second Life, a criação de uma estética e uma linguagem visual próprias requer pesquisas e projetos visando os conteúdos a serem criados. Isso não tem relação alguma com ser capaz de fazer ilhas feias ou bonitas, lucrativas ou não.
Àquelas alturas, já havia me dado conta de que a hegemonia exercida por alguns grupos no SL se devia à forma engajada como se colocavam nesta corrida "conceitual" para deixarem suas "marcas" no metaverso, isto é, no modo como investiam através de arranjos criativos articulados nesses "processos de hibridização de ecossistemas e tecnosistemas" (Lucia Santaella, 2008).
Isso valia para tudo, desde avatares, incluindo modos de "apresentação de si", edifícios, objetos diversos e as ditas recriações de ambientes naturais e urbanos. Como equacionar então minha pretensão de criar "paisagens brasileiras", se a maior parte das texturas e matérias primas disponíveis remetiam a ambientes e contextos europeus e norte-americanos?
Para se obter um efeito estético que valesse a pena em termos de sensoriabilidades e sensibilidade, as texturas a serem usadas eram peças fundamentais e essa foi uma dificuldade real no meu caso, porque naquela época a oferta e a variedade de objetos relacionados aos ambientes tropicais ainda era muito pequena.
Assim, em virtude dos desafios que as referências que eu pretendi levar para o Second Life impunham, a realização do projeto exigiu a participação de colaboradores que pudessem me ajudar a traduzir e a adaptar idéias em conceitos nos termos daquela plataforma, de acordo com as ferramentas, alternativas e resultados que ela oferecia naquele momento. A este respeito, o experimento serviu também para sondar até onde seria possível obter arranjos colaborativos e criativos entre brasileiros, tal como já acontecia com alguns grupos no SL.
Neste caso, a participação no projeto de outros avatares brasileiros envolvidos com criação foi fundamental. Destaco aqui a participação de Jacob Brenner que deu as coordenadas iniciais, sobretudo em termos do desenho e da concepção espacial do Okatu, além da execução do projeto que envolveu ainda a criação de vários objetos com texturas especiais. Ao fotógrafo BrunoLisboa Oh devo os ajustes paisagísticos necessários para garantir a "cara brasileira" do Okatu, sem cair na ilusão folclórica. Em um momento em que avatares étnicos realistas circulando pelo SL era ainda uma raridade, Klaus Barzane concebeu Ubirajara e Iracema, os avatares patronos do Okatu.
Estes foram meus principais interlocutores nesta fase. Cada um à sua maneira e a partir de suas respectivas referências e competências contribuiu decisivamente para o resultado final dessa primeira etapa do Okatu.
...No fundo do mato virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente... (Mario de Andrade)
Ter identificado a presença de uma cultura literária e museográfica em conteúdos criados por grupos de residentes e artistas no SL, me fez ficar atenta aos modos como os brasileiros estariam se apropriando e se relacionando visualmente com o ambiente 3D.
Quando mencionei meu interesse em observar de perto que valores esses brasileiros estariam levando para o SL, me referi, sobretudo, às imagens-signos ou paisagens que estariam criando lá dentro, bem como os significados atribuídos a elas, a partir de modos de ação e de interação que elas instituiriam naquele ambiente.
Paralelamente, na condição de residente, minha principal motivação foi fugir do padrão comercial apresentado pela maioria das ilhas brasileiras. Somos um país conhecido por sua exuberância natural e que apresenta diferentes escalas de desenvolvimento e urbanização, o que no mínimo nos garante bastante diversidade sócio-ambiental. Além disso, fazemos parte do seleto grupo de setenta e oito línguas, entre as cerca de três mil faladas no mundo que possui uma literatura (de excelente qualidade por sinal). Nos idos de 2007 - 2008, com raríssimas exceções, nada disso estava sendo contemplado pelos criadores e designers brasileiros.
Por que não trabalhar sobre este filão das tradições literárias e pictóricas nacionais, como vários outros grupos estavam fazendo, a partir de suas referências culturais específicas? Esta foi a pergunta que me levou a realizar o primeiro experimento: a recriação de algumas paisagens nativas tais como concebidas pelo romantismo brasileiro. Ubirajara, Iracema e também Macunaíma (como sabemos, Mario se inspirou em José de Alencar) foram relidos com o intuito de apreender a imaginação poética que seus autores utilizaram para representarem não somente os heróis de nossa gente, mas o mundo natural no contexto brasileiro.
Pintores como Vitor Meireles, Antonio Parreiras e Pedro Américo foram igualmente consultados como referências para entender melhor como se deu a tradução pictórica dessas paisagens fundadoras e seus personagens-heróis, literários ou não. Neste caso, o primeiro desafio consistiu em tentar captar os enquadramentos, a composição de cena (que elementos foram selecionados para comporem a paisagem brasileira retratada por esses pintores), cores, luzes, tudo isso buscando recriar virtualmente estas paisagens, "conciliando" suas perspectivas românticas originais com os dispositivos e recursos que o programa punha à minha disposição.
Segue abaixo takes tomados da primeira versão do Okatu. De forma alguma ela pretendeu ser uma réplica fiel de tal ou qual autor, pintor ou quadro, apenas o conceito geral a partir da qual foi concebida e a orientou foi buscado nas fontes mencionadas acima.
Para aqueles que imaginam mundos virtuais dominados pelo visual high tech, por paisagens urbanas, pós-urbanas e pós-industriais decadentes, ou ainda pós-modernas, o SL surpreende exatamente pela diversidade e exuberância de suas “paisagens naturais”, suas inúmeras recriações de florestas, montanhas, rios, lagos, bosques, jardins, cachoeiras, cavernas etc.
O observador interessado poderá detectar os contornos míticos e encantados que estas paisagens apresentam e o quanto elas são comparáveis àquelas presentes na literatura românica (Idade Média em diante), sem contar as influências góticas trazidas e muito presentes nas ilhas de RPG, tudo isso devidamente acompanhado de muitos rumores de anjos, vampiros, monstros, seres imaginários de todas as espécies, além da arte romântica (pintura e literatura) propriamente dita. Temos aí uma proposta nítida de reencantamento do mundo.
É claro que nada disso exclui paisagens modernas, realistas e/ou modernistas, com seus respectivos imaginários da cidade moderna ou modernista, com destaque, inclusive, para expressões críticas a respeito, além da presença do pós-modernismo futurista de artistas como Scope Cleaver e outros, e sobre as quais falarei mais adiante.
Contudo, arrisco-me a dizer que este mundo virtual é surpreendentemente romântico e este aspecto é um ponto a ser explorado quando se trata de compreendê-lo do ponto de vista de sua antropologia e de uma sociologia da cultura. O que este excesso de apelo romântico quer dizer, exatamente, a estas alturas dos acontecimentos? No meu entendimento não se trata apenas de um apelo nostálgico, passadista. Há mais coisas entre os prims e os pixels.
Muito embora igualmente expostos à cultura de massas, a maior parte dos grupos que participa do SL trouxe para o 3D suas referências literárias nacionais ao recriar ambientes naturais e a matéria – o ar, a água, a terra, o brilho da luz do sol e da lua, astros, a flora e fauna, etc, ao mesmo tempo que suas respectivas tradições pictóricas. Por isso chamou-me atenção a participação, mesmo que relativamente discreta dos museus.
Sabe-se que no mundo moderno os museus foram muito importantes no processo de nation building, especialmente no que se refere à socialização dos indivíduos no repertório de valores estéticos, espirituais e morais considerados fundamentais para as nações, que uma vez identificados ou mesmo associados a determinados objetos – uma pintura, uma escultura, por exemplo – fizeram deles seus símbolos nacionais.
Diria que a cultura museográfica se encontra presente no SL de várias maneiras. Não apenas nas referências a artistas, escolas, cronologias, motivos, temas, mas, sobretudo, nos modos de apresentação da imagem – e da paisagem – que os museus instituíram e que implicam tecnologias do olhar específicas.
Através de exposições permanentes abertas ao público, gerações de cidadãos foram apresentadas a esses objetos sagrados assim dispostos. Neste caso, a internalização dos valores associados a eles não se fez meramente a partir de sua forma ou conteúdo propriamente imagético, mas também dos modos de sua apresentação e contemplação devidamente ritualizados. Os museus, juntamente com as exposições de fotografia e o cinema instituíram modos de ver e perceber o mundo material ou a materialidade do mundo, como na reprodução de um ícone da pintura romântica, bastante conhecido no SL por causa de AM Radio, um artista que nele se inspirou e o utiliza em seu profile.
...Antes de ser um repouso para os sentidos, a paisagem é obra da mente. Compõe-se tanto de camadas de lembranças quanto de estratos de rochas...
(Simon Schama, Paisagem e Memória)