“Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista....” (Malinowski, B. In Malinowski. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978: 19)
Argonautas do pacífico ocidental foi considerado um dos 100 livros mais importantes do século XX, de acordo com levantamento feito pelo jornal Folha de São Paulo. Publicado em 1922, de lá para cá, a citação acima tem sido uma espécie de mantra para todos os neófitos na disciplina.
Parafraseando uma epopéia clássica (donde a referência ao mito grego dos Argonautas), Malinowski apresenta este personagem – o antropólogo – em busca do seu “velocino de ouro”. Nós sabemos que ele não só o encontrou, mas o apresentou às gerações seguintes de antropólogos e leitores, pelo nome nativo com o qual passou a ser conhecido – o kula.
Desde então, o kula tem sido o símbolo do achado e do encontro etnográficos por excelência, da mesma forma que o relato de Malinowski continua sendo a narrativa arquetípica de uma etnografia. É verdade que, com o passar do tempo, a etnografia desenvolveu outras possibilidades e estratégias de escrita (cf Clifford, 1998), mas isso não impediu que a experiência de “ir a campo”, mesmo em suas formas mais abreviadas e inusitadas não continue a incluir aquele evento sem o qual, segundo Malinowski, não existe etnografia alguma: o deslocamento, a viagem. Enfim, tudo começa com um deslocamento ou viagem, mesmo que nos tempos atuais o “corpo” do antropólogo não precise sair do lugar, ou mesmo fazer uma grande viagem.
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Para dar início a esta discussão, já que pretendo voltar a ela inúmeras vezes, devo dizer que o meu problema etnográfico começou exatamente no momento em que constatei que o meu corpo orgânico, biológico, não era mais suficiente para ir até “lá” onde deveria fazer a minha observação participante. Mais ainda, no momento seguinte após fazer meu primeiro login quando constatei também que não era somente “eu” quem veria as coisas, ou andaria naqueles “lugares”, mesmo que em todos os momentos “eu” estivesse junto, por perto, testemunhando e participando de tudo.
Não se trata de uma conversa de doido, mas eu penso que não teremos uma antropologia da cibercultura, enquanto não realizarmos os devidos estranhamentos e levarmos em conta estes detalhes sobre a natureza das interfaces e do(s) “corpo/corpos” e/ou suporte(s) necessário(s), através dos quais o antropólogo realiza sua pesquisa de campo no ciberespaço. Estou convencida de que não poderemos descartar facilmente esta discussão, pois é ela que emprestará alguma singuralidade às nossas observações e interpretações a respeito desses fenômenos.
Mas se é assim, por que então citar Malinowski? Não é meu objetivo afirmar uma "autoridade etnográfica", mas discutir melhor os termos em que a etnografia dos/nos mundos virtuais se afasta do modelo que ainda sustenta as representações do senso comum acerca do ofício do antropólogo. É verdade que na maior parte das minhas imersões eu estive sozinha, rodeada apenas pelo meu equipamento, no caso, um computador e toda a parafernália que o cerca, além do fato de muitas vezes ter observado minha avatar “cair” em uma “praia tropical”.
Quero dizer com isso que houve deslocamento sim, porém, a qualidade da experiência deste deslocamento é/foi diferente daquela narrada por Malinowski e não aparece descrita em boa parte das narrativas feitas por meus colegas. Ela exigiu algo de mim que a literatura antropológica não tem discutido muito ainda. No meu caso tive de recorrer à literatura, muito embora sabendo que as narrativas ficcionais não podem ser confundidas com referências teóricas.
Primeiro, parabéns pela iniciativa do blog. Acho que será um excelente espaço de discussão. Lendo esse seu post, me lembrei dos textos que li na disciplina da profa. Vera Lúcia Follain no semestre passado no mestrado da PUC. Trabalhamos bastante a questão dos deslocamentos de plataformas, deslizamentos dos textos, narrativas etc. Foi muito interessante. Lemos Vilém Flusser, Chartier, McLuhan, Certeau, Peter Bürger, Huyssen. E um outro prof da PUC que vem realizando essa discussão dos deslocamentos, através da literatura mas a partir das cidades, é o Renato Cordeiro Gomes (livro: Todas as cidades, a cidade).
ResponderExcluirPuxa que legal Bianca! Eu já li alguma coisa do Flusser, claro o Chartier e DeCerteau. Se tiver os textos digitalizados desse pessoal manda pra nossa lista. Vou fazer lá uma pasta sobre cibercultura. Obrigado pela visita!
ResponderExcluirLaura querida,
ResponderExcluirachei muito interessante você iniciar o blog citando e parafraseado o Sir B. MAlinowiski. NA verdade foi através dele que me apaixonei pela Antropologia e posteriormente pela Antropologia do Consumo, através de toda discussão que este faz sobre a cultura material e sobre o prazer que os individuos nutrem pela posse dos objetos independente da influência da cultura capitalista.
A viagem etnográfica hoje, no entanto, tem transcendido os limites geográficos e as trocas continuam simbólicas mas nem sempre materiais, tal como o ciberespaço nos mostra. Essa é uma discussão e tanto que podemos travar por aqui.
òtima iniciativa!
bjs Shirley
Sem dúvida, Shirley, conto contigo para discutirmos isto e outras questões aqui.
ResponderExcluirUm bj, Laura