sábado, 24 de outubro de 2009

O direito de sonhar

O homem é um deus quando sonha e um mendigo quando pensa

Sempre tive muito interesse pelos mundos paralelos, pelo tema da imaginação e do imaginário. Não se trata de um interesse exclusivamente acadêmico e teórico. Posso dizer francamente que tal como uma Madame Bovary às avessas, cresci lendo freneticamente um certo gênero de narrativa que desenvolveu em mim um modo muito particular de leitura, imersiva, onde o livro ou o texto sempre foram muito mais lugares, regiões, mundos a serem habitados, para onde me deslocava, migrava e vivia por algum tempo, do que uma superfície plana de papel sobre a qual haviam códigos e mensagens a serem interpretados. A leitura sempre implicou para mim em um tipo de movimento e de deslocamento. 

Uma diversidade de autores contribuiu decisivamente para esta experiência com a leitura. Cito entre tantos Aldous Huxley, Arthur Clarke, Bram Stoker, Campanela,  Cervantes, Dante Alighieri, Edgard Alan Poe, Frank Herbert, Goethe, John Milton, Jonathan Swift, Julio Verne, Kafka, Lewis Carol, Lovecraft, Mary Shelley, Michael Ende, Philip Dick, Ray Bradbury, Rudyard Kipling, Stevenson, Thomas Morus, Tolkien, e muitos outros também como Edgar Rice Burroughs (Tarzan), Lee Falk (Fantasma, Mandrake), que não escreveram exatamente livros, mas um tipo de literatura que embalou meus sonhos de adolescente. 

Mais recentemente incluiria Anne Rice e J.K. Rowling nesta relação de autores que podem ser reunidos em um gênero bastante amplo, sem fronteiras definidas e que Jorge Luis Borges denominou de literatura fantástica (muito mais a título de provocação do que por acreditar que essas classificações fazem algum sentido para os leitores), tendo sido ele próprio um de seus grandes expoentes em nosso continente, ao lado de Bioy Casares e Julio Cortazar

Se faço aqui este parêntese literário é para poder situar melhor o meu ponto de vista sobre mundos virtuais, o modo como eu inicialmente entrei neles, orientada por minha socialização como leitora, pelo meu habitus e gosto adquirido por este tipo de literatura e estética, culminando com os HQ, e que mais tarde levou-me a ter simpatia e interesse pela cultura de massas. 

Talvez, por isso mesmo, ao decidir estudar o Second Life tenha voltado novamente para estas leituras e procurado autores que também se serviram delas como matéria prima para suas reflexões sobre a imaginação e o imaginário. Gaston Bachelard foi sem dúvida um dos pensadores a quem recorri. Ao entrar no Second Life entendi imediatamente que teria de voltar a seus livros dedicados à imaginação da matéria e ao devaneio. Eles se constituíram em um ponto de partida para muitas de minhas observações, e, sobretudo, para muitas experiências de fruição naquele ambiente. Relidos durante esses dois anos, paralelamente às imersões, eles me proporcionaram alguns insights sobre o que chamarei de a imaginação da matéria e da natureza nos mundos virtuais. 

Em sua Introdução à publicação brasileira do livro O direito de sonhar, uma coletânea de artigos póstumos de Bachelard, José Américo Motta Pessanha, ele também um filósofo a quem tive a honra de assistir suas aulas sobre Bachelard, assim definiu a obra do pensador francês:

...Até o final de sua vida e de sua obra, Bachelard perseguirá o duplo projeto: pensar com rigorosa atualidade o universo sempre em retificação da ciência; seguir – fascinado – à procura dos instantes poéticos, aqueles instantes nos quais a dramaticidade inerente a um tempo irremissivelmente esfacelado é substituída pela felicidade e pela libertação do trabalho criador. Sobre sua mesa de filósofo, como descreve na belíssima La Flamme d´une Chandelle, alternam-se incessantemente o dia e a noite, o reino do conceito e o reino da imagem: os intricados textos científicos, as obras dos artistas. Na solidão fecunda desse pensador-camponês ilhado na cidade grande, a chama é a luz que clareia, mas também verticalidade: permanente convite ao vôo. Sua mesa de filósofo, confessa esse incansável leitor, é na verdade sua “mesa de existência” ...
(Pessanha, 1985:30)


Rodeada por meu equipamento e meus livros, sentada em minha “mesa de existência” também cheguei a praias e ilhas distantes, somewhere. Levei junto comigo a antropologia que aprendi com meus mestres, mas também os meus sonhos de modo a poder atar as duas pontas de minha existência, a infância e a maturidade, o sonho e o pensamento.







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