segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Okatu - introdução

“Existem gerações do real assim como há gerações demográficas ou culturais.

A realidade nunca é dada de antemão (...) Incessantemente nossa espécie deriva de uma geração de realidade para outra, através de um movimento de desrealização que comporta duas fases principais: uma fase de simulação da realidade, relativa ao campo das representações filosófica, científica ou artística; e uma fase, geralmente não percebida, de substituição, na qual o real da geração precedente cede lugar ao da nova”.

(Paul Virilio, O resto do tempo)

“...a distinção entre objetos artificiais e objetos naturais parece a cada um de nós imediata e sem ambigüidade.(...) Se analisarmos esses juízos, veremos, no entanto, que não são imediatos nem estritamente objetivos...”

(Jacques Monod, o acaso e a necessidade)
Entrei no Second Life em 2007, juntamente com muitos outros brasileiros. Este foi o ano em que o programa ganhou uma interface de acesso em português tendo sido “anunciado” e “introduzido” pela mídia nacional ao público brasileiro como uma “poderosa” plataforma de marketing, mídia & entretenimento, além de um excelente ambiente de negócios. Um lugar onde as pessoas poderiam encontrar novas oportunidades de trabalho, ganhar algum dinheiro, além de ampliar seu network.

Tendo em mente o que acontecera com o Orkut fiquei bastante interessada em acompanhar de perto a epopéia desses brasileiros na nova plataforma: que valores culturais eles estariam levando consigo para lá, de modo a alcançarem seus objetivos? Mais ainda, que objetivos seriam estes? Confesso que fiquei mais curiosa ainda para saber que relações estabeleceriam com todos aqueles bens/objetos digitais que circulavam no Second Life.

Mas devo confessar que tão logo ingressei no SL, vislumbrei de imediato muitas outras possibilidades de utilização do programa. Uma vez lá dentro constatei que poderia mesclar a pesquisa com o meu lado criativo e poético, com a literatura, e por que não – a utopia. Já citei aqui alguns escritores que me guiaram durante o trabalho de campo. Faltou mencionar escritores e pensadores brasileiros que também me inspiraram e foram meus guias, tendo me acompanhado durante esta jornada de descobertas, aprendizagem e trato diário com a estranheza.

Okatu foi o lugar concebido por mim para realizar meus experimentos ciber-antropofágicos e minha utopia ciber-tropicalista de traduzir em prims e em pixels imagens de pensadores e escritores brasileiros. Okatu é um nome de origem tupi e significa algo como “casa boa” ou “casa do bem”. Este conceito resume minha obstinação em recriar meu país virtualmente, a partir das paisagens, signos e ambientes emblemáticos presentes na literatura nacional – ensaística e ficcional – mas também de pesquisar suas possibilidades didático-pedagógicas e metodológicas em relação ao ensino e à pesquisa (da antropologia principalmente) no ambiente 3D. O projeto Okatu já se encontra em sua quarta versão.

Por falta de recursos não pude mantê-las todas montadas ao mesmo tempo, porque isso requer bastante espaço e prims, e, assim, as versões tiveram que substituir umas as outras. Mas cada uma delas poderá ser remontada novamente, desde que haja condições para tal, ou seja, ilhas e prims disponíveis. Cada uma delas dispõe de um inventário (acervo) e isso inclui desde avatares especiais, objetos-flora, objetos-fauna, objetos vários, texturas etc. Nos próximos posts falarei mais detalhadamente sobre cada uma das versões do projeto. Abaixo, foto de uma roça de mandioca virtual.

Okatu versão I - roça de mandioca

sábado, 19 de dezembro de 2009

A dor e a delícia de ter um Avatar (1)

Depois de quinze anos de produção chega às telonas o mais novo filme de James Cameron – Avatar. Para quem gosta do gênero sci-fi será um prato cheio para muitas discussões sobre temas que relacionam ficção científica, ambientalismo, sustentabilidade, política, racismo, até o amor romântico (politicamente correto?) entre um avatar espião e uma nativa alien de um planeta distante, Pandora. O cardápio não poderia ser mais variado, visando diferentes gostos e latitudes. Não creio ser mera coincidência que a estréia mundial de Avatar tenha sido marcada finalmente para o dia do encerramento da conferência de Copenhagen, 18 de dezembro de 2009.

Mas não foi para discutir os aspectos ambientais, políticos ou estéticos de Avatar que o trouxe aqui. Minha questão foi aproveitar a ocasião da estréia do filme que promete “mudar os rumos do cinema” para lembrar um detalhe que durante toda esta avalanche publicitária não está sendo devidamente levado em conta. Ter um avatar não é mais uma experiência exótica para usos e finalidades remotas somente: ela já faz parte da vida cotidiana de milhões de seres humanos comuns: pobres, ricos, feios, bonitos, jovens, adultos, tetraplégicos, solitários e anti-sociais empedernidos ou não, que não precisam sair sequer de suas casas para irem ter com seus avatares.


No meu modo de ver os melhores momentos de Avatar são aqueles em que o filme explora esta que é a experiência mais comum e ao mesmo tempo mais surpreendente, intrigante e atraente do RPG e dos jogos virtuais: a dor e a delícia de se ter um avatar! Muitos gamers com quem conversei nesses anos me confessaram que este é o grande fascínio desses jogos, razão pela qual eles se tornaram uma das formas de entretenimento preferidas dos jovens e dos não tão jovens assim
.

Embora o filme não faça referências ao RPG, aos jogos ou mundos virtuais existentes, eles se fazem presentes de vários modos. Por isso mesmo, arrisco-me a dizer que Avatar não traz grandes novidades para aqueles que praticam esses jogos, a não ser o visual impactante, espetacular, grandioso, um 3D superlativo e tecnologicamente perfeito que os games virtuais ainda não oferecem, mas que não tardarão a fazê-lo. Cá entre nós, não estranharei se em muito pouco tempo não me deparar com réplicas no SL de azulões Na’Vi. Também não duvido nada que algum aficionado recrie no grid uma ilha de RPG inspirada em Pandora, com uma natureza tão exuberante quanto.


Para quem não é familiarizado com RPG, games e mundos virtuais, fica a observação de que a melhor coisa do filme é, sem dúvida, a história da relação de Jake Sully com seu avatar, bem como a dramatização ficcionalizada do seu processo de “deslocamento”, começando pela cena da empatia inicial (absolutamente necessária!), o “transporte” propriamente dito do corpo para o "corpo alternativo", até o momento final da conexão quando então nos deparamos com o olhar do avatar e sabemos que uma parte de Jake está ali.


Creio ser a primeira vez que o cinema narra a experiência deste processo de transporte e Cameron dá uma dica importante: apesar de concebidos para serem apenas “corpos alternativos”, extensões a serem pilotadas por humanos, após a conexão os avatares não se comportam mais como meras extensões deles, ao mesmo tempo em que não se tornam inteiramente “outros”. Algo acontece e se você pensou em híbridos, tanto melhor...começa a entender a lógica desta cultura.

Em contrapartida, a situação de bipolaridade apresentada pela cientista Grace Augustine com seu avatar não deixa também de ser uma concessão do diretor ao estereótipo ou à caricatura que a mídia tradicional gosta de fazer da psicologia dos gamers e do envolvimento que possuem com suas criaturas, como se tratasse simplesmente de uma relação de dependência. No filme, uma vez conectada ao seu avatar, ela é uma pessoa de bem com a vida, mas separada dele torna-se uma pessoa difícil e estressada.


Seja como for, de forma romântica ou caricatural, os avatares estão chegando à cultura de massas. Inicialmente restritos ao universo do RPG e dos jogos virtuais, como aquilo que os diferenciavam das demais mídias massivas e formas de entretenimento, eles estão sendo descobertos pela televisão e o cinema que estão se dando conta do filão a ser explorado pela dor e a delícia de se ter um avatar!

Segue um ensaio feito no Second Life by Plasticbade


sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O Império do Meio (1)

Estou de férias do Second Life e tenho aproveitado para ler blogs de pessoas que também costumam escrever sobre suas experiências no metaverso. Observo que muitas delas também decidiram dar um tempo no SL, depois de terem se aborrecido com várias situações lá dentro. Isso é bastante comum, especialmente entre avatares experientes. Muitos se tornam impacientes diante do excesso de dramas provocados por outros avatares. Mas o que me chama atenção é que alguns parecem lamentar o fato de o Second Life não ser apenas um game. Segundo eles, se assim fosse, tudo seria mais fácil de ser administrado, pois os dramas poderiam ser evitados.

Ao ler todo este material me pergunto por que a referência aos games, ou melhor, a uma representação purificada deles, em um momento de crise? Sou levada a concluir que tenho diante de mim, guardadas as proporções, um cenário muito similar àquele descrito por Bruno Latour em Jamais fomos modernos. Neste caso, o que meus blogueiros estão querendo dizer?

Parece-me que mesmo sabendo não tratar-se de apenas um game, a comparação traz a eles a segurança necessária para poderem falar de seus desconfortos, apontarem falhas técnicas ou éticas, ou mesmo fazerem comparações com outros games, de modo a estabelecerem parâmetros de satisfação ou de padrões de eficiência quanto à gestão que as empresas proprietárias realizam. No caso do Second Life é uma deixa para se fazer críticas à Linden Lab que peca por não ter se dado conta de que justamente a maior “complexidade” desta plataforma só aumenta sua responsabilidade – social e tecnológica – em geri-la.

Ao mesmo tempo, lamentar que o Second Life não é apenas um game, é ter de admitir que um monte de coisas “a mais”, fora dos scripts tecnológicos previstos acontece por lá, simplesmente porque ele não é apenas um game, mas um programa aberto, o que facilita o surgimento de mais híbridos em relação aos demais suportes games; em suma, um programa que a todo o momento cria novos fatos e artefatos, muitos deles não previstos pelas lógicas purificadas da C&T.


Reparem como nos parágrafos acima podemos entrever os vários monstrinhos que habitam nossa rede sociotécnica. Não por acaso, eles, criaturas híbridas por excelência, também passaram a figurar como personagens e habitantes bastante comuns neste mundo virtual.
De fato, suas imagens e presenças não são de forma alguma arbitrárias e podem ser tomadas como uma alegoria deste tipo de realidade que o Second Life instituiu, a partir da mistura de coisas absolutamente díspares no tempo e no espaço, que vão desde experimentos avançados associados ou não às novas tecnologias de negócios, que implicam em mudanças de processos produtivos vinculados ou não a interesses políticos, como a nova cadeia produtiva que promete ser aquela que comandará em futuro próximo toda a nossa economia, baseada em trabalho imaterial e com sua oferta de artefatos igualmente imateriais, até a semiótica de seus avatares. Mas isso não é tudo.

Definitivamente o Second Life não abriga em seu interior apenas o lado "empreendedor” e “inovador” deste mundo. Do início ao fim, de uma ponta a outra tudo isso acima vem entremeado com uma torrente de preconceitos, romantismo exacerbado, disputas de poder, intrigas, mas também muito sofrimento, ressentimento, abusos, ofensas, o sexo em suas manifestações mais exóticas e bizarras e, é claro, não poderia faltar o crime: acusações de roubo e pirataria fazem parte do cotidiano do SL, tal como a prostituição (em vários estados dos EUA é crime). Ora dirão, como isto é possível? Ou por que "tudo isso" não ficou de fora?

Não me referi por acaso ao livro de Latour, da mesma forma que ele não se refere aos antropólogos por acaso. O livro se torna um guia importante para quem quiser desbravar estes mundos, pois não se pode entrar neles pensando que estaremos no topo da alta tecnologia somente, lidando apenas com pessoas sofisticadas, situações puras e protegidas das paixões humanas. Tudo isso estará lá, devidamente misturado, junto, digitalizado em pixels e em prims! Eis a questão que torna tudo mais complexo. Paixões e política fazem parte dos mundos digitais e os atores que lá estão são sempre atores sociais e sabem disso, da mesma forma que também sabem o que pretendem fazer lá dentro.

...Reais como a natureza, narrados como o discurso, coletivos como a sociedade, existenciais como o Ser, tais são os quase-objetos que os modernos fizeram proliferar, e é assim que nos convém segui-los, tornando-nos simplesmente aquilo que jamais deixamos de ser, ou seja, não-modernos...
(Bruno Latour, Jamais fomos modernos)


Bem vindos ao Império do Meio!