Estou de férias do Second Life e tenho aproveitado para ler blogs de pessoas que também costumam escrever sobre suas experiências no metaverso. Observo que muitas delas também decidiram dar um tempo no SL, depois de terem se aborrecido com várias situações lá dentro. Isso é bastante comum, especialmente entre avatares experientes. Muitos se tornam impacientes diante do excesso de dramas provocados por outros avatares. Mas o que me chama atenção é que alguns parecem lamentar o fato de o Second Life não ser apenas um game. Segundo eles, se assim fosse, tudo seria mais fácil de ser administrado, pois os dramas poderiam ser evitados.
Ao ler todo este material me pergunto por que a referência aos games, ou melhor, a uma representação purificada deles, em um momento de crise? Sou levada a concluir que tenho diante de mim, guardadas as proporções, um cenário muito similar àquele descrito por Bruno Latour em Jamais fomos modernos. Neste caso, o que meus blogueiros estão querendo dizer?
Parece-me que mesmo sabendo não tratar-se de apenas um game, a comparação traz a eles a segurança necessária para poderem falar de seus desconfortos, apontarem falhas técnicas ou éticas, ou mesmo fazerem comparações com outros games, de modo a estabelecerem parâmetros de satisfação ou de padrões de eficiência quanto à gestão que as empresas proprietárias realizam. No caso do Second Life é uma deixa para se fazer críticas à Linden Lab que peca por não ter se dado conta de que justamente a maior “complexidade” desta plataforma só aumenta sua responsabilidade – social e tecnológica – em geri-la.
Ao mesmo tempo, lamentar que o Second Life não é apenas um game, é ter de admitir que um monte de coisas “a mais”, fora dos scripts tecnológicos previstos acontece por lá, simplesmente porque ele não é apenas um game, mas um programa aberto, o que facilita o surgimento de mais híbridos em relação aos demais suportes games; em suma, um programa que a todo o momento cria novos fatos e artefatos, muitos deles não previstos pelas lógicas purificadas da C&T.
Reparem como nos parágrafos acima podemos entrever os vários monstrinhos que habitam nossa rede sociotécnica. Não por acaso, eles, criaturas híbridas por excelência, também passaram a figurar como personagens e habitantes bastante comuns neste mundo virtual. De fato, suas imagens e presenças não são de forma alguma arbitrárias e podem ser tomadas como uma alegoria deste tipo de realidade que o Second Life instituiu, a partir da mistura de coisas absolutamente díspares no tempo e no espaço, que vão desde experimentos avançados associados ou não às novas tecnologias de negócios, que implicam em mudanças de processos produtivos vinculados ou não a interesses políticos, como a nova cadeia produtiva que promete ser aquela que comandará em futuro próximo toda a nossa economia, baseada em trabalho imaterial e com sua oferta de artefatos igualmente imateriais, até a semiótica de seus avatares. Mas isso não é tudo.
Definitivamente o Second Life não abriga em seu interior apenas o lado "empreendedor” e “inovador” deste mundo. Do início ao fim, de uma ponta a outra tudo isso acima vem entremeado com uma torrente de preconceitos, romantismo exacerbado, disputas de poder, intrigas, mas também muito sofrimento, ressentimento, abusos, ofensas, o sexo em suas manifestações mais exóticas e bizarras e, é claro, não poderia faltar o crime: acusações de roubo e pirataria fazem parte do cotidiano do SL, tal como a prostituição (em vários estados dos EUA é crime). Ora dirão, como isto é possível? Ou por que "tudo isso" não ficou de fora?
Não me referi por acaso ao livro de Latour, da mesma forma que ele não se refere aos antropólogos por acaso. O livro se torna um guia importante para quem quiser desbravar estes mundos, pois não se pode entrar neles pensando que estaremos no topo da alta tecnologia somente, lidando apenas com pessoas sofisticadas, situações puras e protegidas das paixões humanas. Tudo isso estará lá, devidamente misturado, junto, digitalizado em pixels e em prims! Eis a questão que torna tudo mais complexo. Paixões e política fazem parte dos mundos digitais e os atores que lá estão são sempre atores sociais e sabem disso, da mesma forma que também sabem o que pretendem fazer lá dentro.
...Reais como a natureza, narrados como o discurso, coletivos como a sociedade, existenciais como o Ser, tais são os quase-objetos que os modernos fizeram proliferar, e é assim que nos convém segui-los, tornando-nos simplesmente aquilo que jamais deixamos de ser, ou seja, não-modernos...
(Bruno Latour, Jamais fomos modernos)
Bem vindos ao Império do Meio!
Exatamente nessa falta de "pureza" que reside a beleza de mundos virtuais como o SL. Lembra-me Mary Douglas em Pureza e Perigo, onde ela comenta sobre a força criadora do caos, do poder da margem, de como a sociedade se reinventa e se alimenta de suas proprias pontas soltas. O fato de SL nao ser um game com regras rigidas, pode incomodar, mas it's life.
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