segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Okatu - introdução

“Existem gerações do real assim como há gerações demográficas ou culturais.

A realidade nunca é dada de antemão (...) Incessantemente nossa espécie deriva de uma geração de realidade para outra, através de um movimento de desrealização que comporta duas fases principais: uma fase de simulação da realidade, relativa ao campo das representações filosófica, científica ou artística; e uma fase, geralmente não percebida, de substituição, na qual o real da geração precedente cede lugar ao da nova”.

(Paul Virilio, O resto do tempo)

“...a distinção entre objetos artificiais e objetos naturais parece a cada um de nós imediata e sem ambigüidade.(...) Se analisarmos esses juízos, veremos, no entanto, que não são imediatos nem estritamente objetivos...”

(Jacques Monod, o acaso e a necessidade)
Entrei no Second Life em 2007, juntamente com muitos outros brasileiros. Este foi o ano em que o programa ganhou uma interface de acesso em português tendo sido “anunciado” e “introduzido” pela mídia nacional ao público brasileiro como uma “poderosa” plataforma de marketing, mídia & entretenimento, além de um excelente ambiente de negócios. Um lugar onde as pessoas poderiam encontrar novas oportunidades de trabalho, ganhar algum dinheiro, além de ampliar seu network.

Tendo em mente o que acontecera com o Orkut fiquei bastante interessada em acompanhar de perto a epopéia desses brasileiros na nova plataforma: que valores culturais eles estariam levando consigo para lá, de modo a alcançarem seus objetivos? Mais ainda, que objetivos seriam estes? Confesso que fiquei mais curiosa ainda para saber que relações estabeleceriam com todos aqueles bens/objetos digitais que circulavam no Second Life.

Mas devo confessar que tão logo ingressei no SL, vislumbrei de imediato muitas outras possibilidades de utilização do programa. Uma vez lá dentro constatei que poderia mesclar a pesquisa com o meu lado criativo e poético, com a literatura, e por que não – a utopia. Já citei aqui alguns escritores que me guiaram durante o trabalho de campo. Faltou mencionar escritores e pensadores brasileiros que também me inspiraram e foram meus guias, tendo me acompanhado durante esta jornada de descobertas, aprendizagem e trato diário com a estranheza.

Okatu foi o lugar concebido por mim para realizar meus experimentos ciber-antropofágicos e minha utopia ciber-tropicalista de traduzir em prims e em pixels imagens de pensadores e escritores brasileiros. Okatu é um nome de origem tupi e significa algo como “casa boa” ou “casa do bem”. Este conceito resume minha obstinação em recriar meu país virtualmente, a partir das paisagens, signos e ambientes emblemáticos presentes na literatura nacional – ensaística e ficcional – mas também de pesquisar suas possibilidades didático-pedagógicas e metodológicas em relação ao ensino e à pesquisa (da antropologia principalmente) no ambiente 3D. O projeto Okatu já se encontra em sua quarta versão.

Por falta de recursos não pude mantê-las todas montadas ao mesmo tempo, porque isso requer bastante espaço e prims, e, assim, as versões tiveram que substituir umas as outras. Mas cada uma delas poderá ser remontada novamente, desde que haja condições para tal, ou seja, ilhas e prims disponíveis. Cada uma delas dispõe de um inventário (acervo) e isso inclui desde avatares especiais, objetos-flora, objetos-fauna, objetos vários, texturas etc. Nos próximos posts falarei mais detalhadamente sobre cada uma das versões do projeto. Abaixo, foto de uma roça de mandioca virtual.

Okatu versão I - roça de mandioca

sábado, 19 de dezembro de 2009

A dor e a delícia de ter um Avatar (1)

Depois de quinze anos de produção chega às telonas o mais novo filme de James Cameron – Avatar. Para quem gosta do gênero sci-fi será um prato cheio para muitas discussões sobre temas que relacionam ficção científica, ambientalismo, sustentabilidade, política, racismo, até o amor romântico (politicamente correto?) entre um avatar espião e uma nativa alien de um planeta distante, Pandora. O cardápio não poderia ser mais variado, visando diferentes gostos e latitudes. Não creio ser mera coincidência que a estréia mundial de Avatar tenha sido marcada finalmente para o dia do encerramento da conferência de Copenhagen, 18 de dezembro de 2009.

Mas não foi para discutir os aspectos ambientais, políticos ou estéticos de Avatar que o trouxe aqui. Minha questão foi aproveitar a ocasião da estréia do filme que promete “mudar os rumos do cinema” para lembrar um detalhe que durante toda esta avalanche publicitária não está sendo devidamente levado em conta. Ter um avatar não é mais uma experiência exótica para usos e finalidades remotas somente: ela já faz parte da vida cotidiana de milhões de seres humanos comuns: pobres, ricos, feios, bonitos, jovens, adultos, tetraplégicos, solitários e anti-sociais empedernidos ou não, que não precisam sair sequer de suas casas para irem ter com seus avatares.


No meu modo de ver os melhores momentos de Avatar são aqueles em que o filme explora esta que é a experiência mais comum e ao mesmo tempo mais surpreendente, intrigante e atraente do RPG e dos jogos virtuais: a dor e a delícia de se ter um avatar! Muitos gamers com quem conversei nesses anos me confessaram que este é o grande fascínio desses jogos, razão pela qual eles se tornaram uma das formas de entretenimento preferidas dos jovens e dos não tão jovens assim
.

Embora o filme não faça referências ao RPG, aos jogos ou mundos virtuais existentes, eles se fazem presentes de vários modos. Por isso mesmo, arrisco-me a dizer que Avatar não traz grandes novidades para aqueles que praticam esses jogos, a não ser o visual impactante, espetacular, grandioso, um 3D superlativo e tecnologicamente perfeito que os games virtuais ainda não oferecem, mas que não tardarão a fazê-lo. Cá entre nós, não estranharei se em muito pouco tempo não me deparar com réplicas no SL de azulões Na’Vi. Também não duvido nada que algum aficionado recrie no grid uma ilha de RPG inspirada em Pandora, com uma natureza tão exuberante quanto.


Para quem não é familiarizado com RPG, games e mundos virtuais, fica a observação de que a melhor coisa do filme é, sem dúvida, a história da relação de Jake Sully com seu avatar, bem como a dramatização ficcionalizada do seu processo de “deslocamento”, começando pela cena da empatia inicial (absolutamente necessária!), o “transporte” propriamente dito do corpo para o "corpo alternativo", até o momento final da conexão quando então nos deparamos com o olhar do avatar e sabemos que uma parte de Jake está ali.


Creio ser a primeira vez que o cinema narra a experiência deste processo de transporte e Cameron dá uma dica importante: apesar de concebidos para serem apenas “corpos alternativos”, extensões a serem pilotadas por humanos, após a conexão os avatares não se comportam mais como meras extensões deles, ao mesmo tempo em que não se tornam inteiramente “outros”. Algo acontece e se você pensou em híbridos, tanto melhor...começa a entender a lógica desta cultura.

Em contrapartida, a situação de bipolaridade apresentada pela cientista Grace Augustine com seu avatar não deixa também de ser uma concessão do diretor ao estereótipo ou à caricatura que a mídia tradicional gosta de fazer da psicologia dos gamers e do envolvimento que possuem com suas criaturas, como se tratasse simplesmente de uma relação de dependência. No filme, uma vez conectada ao seu avatar, ela é uma pessoa de bem com a vida, mas separada dele torna-se uma pessoa difícil e estressada.


Seja como for, de forma romântica ou caricatural, os avatares estão chegando à cultura de massas. Inicialmente restritos ao universo do RPG e dos jogos virtuais, como aquilo que os diferenciavam das demais mídias massivas e formas de entretenimento, eles estão sendo descobertos pela televisão e o cinema que estão se dando conta do filão a ser explorado pela dor e a delícia de se ter um avatar!

Segue um ensaio feito no Second Life by Plasticbade


sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O Império do Meio (1)

Estou de férias do Second Life e tenho aproveitado para ler blogs de pessoas que também costumam escrever sobre suas experiências no metaverso. Observo que muitas delas também decidiram dar um tempo no SL, depois de terem se aborrecido com várias situações lá dentro. Isso é bastante comum, especialmente entre avatares experientes. Muitos se tornam impacientes diante do excesso de dramas provocados por outros avatares. Mas o que me chama atenção é que alguns parecem lamentar o fato de o Second Life não ser apenas um game. Segundo eles, se assim fosse, tudo seria mais fácil de ser administrado, pois os dramas poderiam ser evitados.

Ao ler todo este material me pergunto por que a referência aos games, ou melhor, a uma representação purificada deles, em um momento de crise? Sou levada a concluir que tenho diante de mim, guardadas as proporções, um cenário muito similar àquele descrito por Bruno Latour em Jamais fomos modernos. Neste caso, o que meus blogueiros estão querendo dizer?

Parece-me que mesmo sabendo não tratar-se de apenas um game, a comparação traz a eles a segurança necessária para poderem falar de seus desconfortos, apontarem falhas técnicas ou éticas, ou mesmo fazerem comparações com outros games, de modo a estabelecerem parâmetros de satisfação ou de padrões de eficiência quanto à gestão que as empresas proprietárias realizam. No caso do Second Life é uma deixa para se fazer críticas à Linden Lab que peca por não ter se dado conta de que justamente a maior “complexidade” desta plataforma só aumenta sua responsabilidade – social e tecnológica – em geri-la.

Ao mesmo tempo, lamentar que o Second Life não é apenas um game, é ter de admitir que um monte de coisas “a mais”, fora dos scripts tecnológicos previstos acontece por lá, simplesmente porque ele não é apenas um game, mas um programa aberto, o que facilita o surgimento de mais híbridos em relação aos demais suportes games; em suma, um programa que a todo o momento cria novos fatos e artefatos, muitos deles não previstos pelas lógicas purificadas da C&T.


Reparem como nos parágrafos acima podemos entrever os vários monstrinhos que habitam nossa rede sociotécnica. Não por acaso, eles, criaturas híbridas por excelência, também passaram a figurar como personagens e habitantes bastante comuns neste mundo virtual.
De fato, suas imagens e presenças não são de forma alguma arbitrárias e podem ser tomadas como uma alegoria deste tipo de realidade que o Second Life instituiu, a partir da mistura de coisas absolutamente díspares no tempo e no espaço, que vão desde experimentos avançados associados ou não às novas tecnologias de negócios, que implicam em mudanças de processos produtivos vinculados ou não a interesses políticos, como a nova cadeia produtiva que promete ser aquela que comandará em futuro próximo toda a nossa economia, baseada em trabalho imaterial e com sua oferta de artefatos igualmente imateriais, até a semiótica de seus avatares. Mas isso não é tudo.

Definitivamente o Second Life não abriga em seu interior apenas o lado "empreendedor” e “inovador” deste mundo. Do início ao fim, de uma ponta a outra tudo isso acima vem entremeado com uma torrente de preconceitos, romantismo exacerbado, disputas de poder, intrigas, mas também muito sofrimento, ressentimento, abusos, ofensas, o sexo em suas manifestações mais exóticas e bizarras e, é claro, não poderia faltar o crime: acusações de roubo e pirataria fazem parte do cotidiano do SL, tal como a prostituição (em vários estados dos EUA é crime). Ora dirão, como isto é possível? Ou por que "tudo isso" não ficou de fora?

Não me referi por acaso ao livro de Latour, da mesma forma que ele não se refere aos antropólogos por acaso. O livro se torna um guia importante para quem quiser desbravar estes mundos, pois não se pode entrar neles pensando que estaremos no topo da alta tecnologia somente, lidando apenas com pessoas sofisticadas, situações puras e protegidas das paixões humanas. Tudo isso estará lá, devidamente misturado, junto, digitalizado em pixels e em prims! Eis a questão que torna tudo mais complexo. Paixões e política fazem parte dos mundos digitais e os atores que lá estão são sempre atores sociais e sabem disso, da mesma forma que também sabem o que pretendem fazer lá dentro.

...Reais como a natureza, narrados como o discurso, coletivos como a sociedade, existenciais como o Ser, tais são os quase-objetos que os modernos fizeram proliferar, e é assim que nos convém segui-los, tornando-nos simplesmente aquilo que jamais deixamos de ser, ou seja, não-modernos...
(Bruno Latour, Jamais fomos modernos)


Bem vindos ao Império do Meio!


quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O campo (2) – deslocamentos, viagens, tempo e espaço

Durante meses seguidos fiz meu trabalho de campo no Second Life em minha casa, logando de “meu escritório”, de “meu desktop”, sentada em “minha cadeira/mesa”, tendo “minha estante de livros” à frente e a “janela com a minha vista” ao lado. Quero dizer com isso que em todo este tempo meus deslocamentos para o “outro lado da tela” foram feitos comigo partindo de um mesmo ponto, de um mesmo lugar, “meu ponto”, para falar nos termos de Castañeda, cercada por objetos com os quais tenho uma relação de familiaridade e intimidade.

Tudo isso ficou ameaçado há poucos dias atrás, quando tive de me afastar de meu ambiente familiar, para passar um tempo fora, morar em outro lugar, em outra cidade, em outro país. Sucedeu que a partir de então, minhas conexões e imersões ficaram incertas e a familiaridade adquirida com minha segunda vida deu lugar a um estranhamento de certo modo inesperado.

Diante deste obstáculo, passei a refletir sobre suas causas. Que fique claro, não houve e não tenho nenhum problema técnico que me impeça de conectar e entrar no SL. Em meu novo ambiente de moradia disponho de todas as comodidades e condições objetivas para tal. Portanto, não estou me referindo a um obstáculo de ordem operacional ou tecnológica, mas a algo que remete às velhas discussões epistemológicas, em torno dos conceitos de tempo e espaço.

Embora já houvesse constatado que as imersões não são idênticas, não se repetem jamais, mesmo quando feitas seguida e continuamente, e nas mesmas condições; embora já houvesse constatado que cada imersão é uma experiência em si mesma, inteira, fazendo com que cada uma seja um instante único, irredutível a qualquer outra, sem garantias de continuidade alguma com quaisquer outras imersões anteriores ou posteriores, eu acreditava que esta diferença se devia unicamente à dimensão temporal. Na verdade, foram estas experiências que me conduziram às idéias de Bachelard, de seu conceito de instante e sua afirmação da descontinuidade do tempo em oposição à duração bergsoniana.

Meu pressuposto era então o de que as imersões configuravam uma série processual, descontínua, cabendo ao esforço e à imaginação poética dos usuários-residentes fazer ou tornar “sua série” de imersões algo mais ou menos contínua, de acordo com suas necessidades, interesses e projetos, como uma montagem fílmica.

Mais ainda, parecia-me que, paralelamente, a relação/interação com o avatar seguia sendo também uma relação processual, descontínua, nos mesmos termos, já que a cada imersão, tínhamos um instante único em que eu e meu corpo biológico, meu avatar e os demais, conformavam assim um evento igualmente singular que findava tão logo a imersão terminava. Isso me fez pensar que a relação do usuário-residente com seu avatar é basicamente fundada na diferença e orientada por ela, mesmo quando os primeiros se empenham em transformá-la numa relação de identidade, com o objetivo de aproximá-la de suas vidas reais.

Pois bem, mas se tomando pelo ângulo do tempo, posso argumentar que cada imersão é única e que independentemente de sua duração constitui também um instante único da/na relação do usuário com seu avatar, eu não havia pensado na dimensão espacial do problema, pelo menos cogitado que sua variação ou mudança pudesse me colocar algum obstáculo.

Foi preciso eu ter me deslocado na vida real, ao mesmo tempo em que pretendia manter minha rotina de imersões, para o problema vir à tona. Minha sorte foi que diante do meu desconforto eu me lembrei imediatamente de uma citação de Alain Badiou (1994): "não se pensa da mesma forma em todos os lugares". Ato contínuo comecei a rememorar todos os procedimentos que costumo por em ação no meu ambiente familiar antes de me conectar, incluindo meus hábitos de pensamento e me dei conta de que eles não me ocorrem em minha nova condição, simplesmente porque aqui eles não fazem muito sentido e estão de certo modo suspensos diante da nova situação em que me encontro.

Segundo Badiou, o que “somos” depende do lugar onde estamos, dos objetos que nele existem, das relações entre eles. Assim sendo, o fato mesmo de ter saído do lugar familiar para outro que me é ainda totalmente estranho, no qual, inclusive sou uma estrangeira, de fato, coloca em risco toda a familiaridade anteriormente construída com meus objetos virtuais.

Percebo assim que minha nova condição espacial me impôs um obstáculo. Como disse, tecnicamente falando está tudo perfeito. O protocolo é o mesmo e ele está funcionando aqui tão bem quanto lá. O problema se apresenta quando me deparo com a avatar e o ambiente do outro lado da tela. Ficou evidente para mim que a “estabilidade” ou a relativa continuidade de meu campo na “segunda vida”, ou o nome que queiramos dar a qualquer coisa deste tipo, supôs que um dos termos da relação, no caso em questão, eu, usuário-residente se conectasse de um mesmo ponto fixo, em um ambiente que me é familiar.

É possível que muitos residentes não tenham se dado conta deste problema ou sequer o experimentado nestes termos. É importante verificar isso, caso a caso, mas pelo que já li a respeito em vários fóruns, identifico aqui as mesmas suscetibilidades de gamers em relação aos atropelos, imprevistos ou mesmo mudanças abruptas em suas condições espaciais de conexão. O lugar de onde se conecta, a máquina, a tela, o mouse, o teclado, a posição da mesa no recinto ou em relação aos pontos cardeais, se orientado para o norte/sul, leste/oeste, tudo passa a fazer uma enorme diferença para se fazer/ter uma boa imersão.

Diante dessa (re)descoberta repentina do espaço, comecei a ler o livro de Doreen Massey (Pelo Espaço. Uma nova política da espacialidade). Logo no início a autora propõe duas coisas que me pareceram fundamentais, especialmente para cientistas sociais, antropólogos e muito particularmente para quem, como eu, está investigando mundos virtuais: a primeira, é que o espaço não pode ser mais pensado como um resíduo do tempo, ou subsumido a ele; a segunda é que apesar da longa história a respeito, devemos parar de associar o espaço somente com a representação, com a fixação do significado (cap. 2).

Como geógrafa, um dos objetivos de Massey em seu livro é “liberar” o espaço dessas camisas de força que o associa de longa data a fechamento (vide a noção de contexto, enquadramento etc, tão caros às ciências sociais) e estase, ou à ciência, escritura, texto e representação e que, segundo ela “quase o sufocaram até a morte, para situá-lo em outras cadeias de significado ...ao lado de abertura, heterogeneidade, diferença e mudança ... e onde ele possa ter uma vida nova e mais produtiva”. (Massey, 2008:42).

Fiquei pensando em como finalizar este post depois deste desabafo etnográfico. Recorri às minhas fontes e encontrei esta machinima que bem pode simbolizar essa relação de poder e autoridade que o tempo tem exercido sobre o espaço em nossas filosofias, da mesma forma que as tentativas deste último em se impor ou mesmo superar o primeiro. As imagens são belas, fortes e mostram muito claramente o quanto a imaginação poética associada à tecnologia pode nos sugerir algumas alternativas interessantes para velhos problemas epistemológicos. As imagens são de Lainy Voom.






sábado, 24 de outubro de 2009

O direito de sonhar

O homem é um deus quando sonha e um mendigo quando pensa

Sempre tive muito interesse pelos mundos paralelos, pelo tema da imaginação e do imaginário. Não se trata de um interesse exclusivamente acadêmico e teórico. Posso dizer francamente que tal como uma Madame Bovary às avessas, cresci lendo freneticamente um certo gênero de narrativa que desenvolveu em mim um modo muito particular de leitura, imersiva, onde o livro ou o texto sempre foram muito mais lugares, regiões, mundos a serem habitados, para onde me deslocava, migrava e vivia por algum tempo, do que uma superfície plana de papel sobre a qual haviam códigos e mensagens a serem interpretados. A leitura sempre implicou para mim em um tipo de movimento e de deslocamento. 

Uma diversidade de autores contribuiu decisivamente para esta experiência com a leitura. Cito entre tantos Aldous Huxley, Arthur Clarke, Bram Stoker, Campanela,  Cervantes, Dante Alighieri, Edgard Alan Poe, Frank Herbert, Goethe, John Milton, Jonathan Swift, Julio Verne, Kafka, Lewis Carol, Lovecraft, Mary Shelley, Michael Ende, Philip Dick, Ray Bradbury, Rudyard Kipling, Stevenson, Thomas Morus, Tolkien, e muitos outros também como Edgar Rice Burroughs (Tarzan), Lee Falk (Fantasma, Mandrake), que não escreveram exatamente livros, mas um tipo de literatura que embalou meus sonhos de adolescente. 

Mais recentemente incluiria Anne Rice e J.K. Rowling nesta relação de autores que podem ser reunidos em um gênero bastante amplo, sem fronteiras definidas e que Jorge Luis Borges denominou de literatura fantástica (muito mais a título de provocação do que por acreditar que essas classificações fazem algum sentido para os leitores), tendo sido ele próprio um de seus grandes expoentes em nosso continente, ao lado de Bioy Casares e Julio Cortazar

Se faço aqui este parêntese literário é para poder situar melhor o meu ponto de vista sobre mundos virtuais, o modo como eu inicialmente entrei neles, orientada por minha socialização como leitora, pelo meu habitus e gosto adquirido por este tipo de literatura e estética, culminando com os HQ, e que mais tarde levou-me a ter simpatia e interesse pela cultura de massas. 

Talvez, por isso mesmo, ao decidir estudar o Second Life tenha voltado novamente para estas leituras e procurado autores que também se serviram delas como matéria prima para suas reflexões sobre a imaginação e o imaginário. Gaston Bachelard foi sem dúvida um dos pensadores a quem recorri. Ao entrar no Second Life entendi imediatamente que teria de voltar a seus livros dedicados à imaginação da matéria e ao devaneio. Eles se constituíram em um ponto de partida para muitas de minhas observações, e, sobretudo, para muitas experiências de fruição naquele ambiente. Relidos durante esses dois anos, paralelamente às imersões, eles me proporcionaram alguns insights sobre o que chamarei de a imaginação da matéria e da natureza nos mundos virtuais. 

Em sua Introdução à publicação brasileira do livro O direito de sonhar, uma coletânea de artigos póstumos de Bachelard, José Américo Motta Pessanha, ele também um filósofo a quem tive a honra de assistir suas aulas sobre Bachelard, assim definiu a obra do pensador francês:

...Até o final de sua vida e de sua obra, Bachelard perseguirá o duplo projeto: pensar com rigorosa atualidade o universo sempre em retificação da ciência; seguir – fascinado – à procura dos instantes poéticos, aqueles instantes nos quais a dramaticidade inerente a um tempo irremissivelmente esfacelado é substituída pela felicidade e pela libertação do trabalho criador. Sobre sua mesa de filósofo, como descreve na belíssima La Flamme d´une Chandelle, alternam-se incessantemente o dia e a noite, o reino do conceito e o reino da imagem: os intricados textos científicos, as obras dos artistas. Na solidão fecunda desse pensador-camponês ilhado na cidade grande, a chama é a luz que clareia, mas também verticalidade: permanente convite ao vôo. Sua mesa de filósofo, confessa esse incansável leitor, é na verdade sua “mesa de existência” ...
(Pessanha, 1985:30)


Rodeada por meu equipamento e meus livros, sentada em minha “mesa de existência” também cheguei a praias e ilhas distantes, somewhere. Levei junto comigo a antropologia que aprendi com meus mestres, mas também os meus sonhos de modo a poder atar as duas pontas de minha existência, a infância e a maturidade, o sonho e o pensamento.







sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Sobre o Second Life (1)

Além das questões impostas pelas travessias e deslocamentos sucessivos RL/SL (abreviações para Real Life e Second Life) e vice-versa, o meu segundo problema etnográfico veio à tona quando tive de começar a explicar às pessoas da RL os interesses que me levaram a estudar o Second Life e do que se tratava, especialmente levando em conta a precariedade das informações veiculadas pela mídia brasileira sobre esta plataforma, mesmo aquela especializada no assunto. As surpresas e estranhamentos diante do meu campo me obrigaram a fazer algumas reflexões.

Em primeiro lugar, ficou patente que a maior parte de meus interlocutores RL – de mesma geração ou não – possuíam pouca familiaridade com os jogos virtuais. Assim, quando não apresentavam um olhar suspeito, traziam consigo uma perspectiva etária/demográfica do fenômeno, como algo relacionado ao mundo infantil, adolescente, no máximo à juventude.

Quanto a esta última representação ela não deixou de ser pertinente e significativa, porém não foi suficiente para explicitar o conceito de juventude em pauta, mas ao contrário, suscitou outras questões sobre o entendimento e representações que essas pessoas possuíam acerca do que vem a ser esta categoria em face das demais fases da vida, especialmente quando entra em cena a questão do consumo e do consumo de tecnologia em particular.

Isso não significa dizer que os games não possam ou não devam ser primariamente associados à juventude, mas minha etnografia demonstrou de forma cabal que categorias como "jovem" e "juventude" em outros contextos sofreram inúmeras transformações e tornaram-se extremamente flexíveis quanto às fronteiras, possibilidades de manipulação, usos e formas de apropriação, especialmente com o uso das TIC´s.

De qualquer modo, isso vale para o Second Life onde a "juventude" não é exatamente uma fase da vida, ou mesmo um problema etário, demográfico, mas  uma condição estabelecida como um “dado” (os avatares "nascem" todos jovens e não costumam morrer) e como um valor moral tal qual a felicidade e a beleza, por exemplo. De fato, toda a utopia do Second Life se baseia no pacto em torno deste triângulo - Beleza, Juventude, Felicidade - amalgamado pelo consumo de bens que não possuem, em princípio, utilidade alguma - o que contribui para corroborar a tradicional imagem de consumo conspícuo, frivolidade e entretenimento.

Em todo o caso é curioso observar como esta utopia apesar de parecer profundamente uniforme, homogeneizadora, ou mesmo ingênua e frívola permite a produção de diferenças e singularidades, no sentido romântico (Romantismo) do termo. Da mesma forma, muito embora não pareça, a criação deste mundo envolve uma grande complexidade, como podemos entrever através de vídeos  e imagens postadas pelos residentes, como as duas machinimas abaixo, de autoria de um mesmo avatar, Tommylee Nightfire.


New Shoes from Tommylee Nightfire on Vimeo.


Farewell from Tommylee Nightfire on Vimeo.

domingo, 11 de outubro de 2009

O Campo (1): de deslocamentos e viagens

“Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista....” (Malinowski, B. In Malinowski. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978: 19)


Argonautas do pacífico ocidental foi considerado um dos 100 livros mais importantes do século XX, de acordo com levantamento feito pelo jornal Folha de São Paulo. Publicado em 1922, de lá para cá, a citação acima tem sido uma espécie de mantra para todos os neófitos na disciplina.

Parafraseando uma epopéia clássica (donde a referência ao mito grego dos Argonautas), Malinowski apresenta este personagem – o antropólogo – em busca do seu “velocino de ouro”. Nós sabemos que ele não só o encontrou, mas o apresentou às gerações seguintes de antropólogos e leitores, pelo nome nativo com o qual passou a ser conhecido – o kula.

Desde então, o kula tem sido o símbolo do achado e do encontro etnográficos por excelência, da mesma forma que o relato de Malinowski continua sendo a narrativa arquetípica de uma etnografia. É verdade que, com o passar do tempo, a etnografia desenvolveu outras possibilidades e estratégias de escrita (cf Clifford, 1998), mas isso não impediu que a experiência de “ir a campo”, mesmo em suas formas mais abreviadas e inusitadas não continue a incluir aquele evento sem o qual, segundo Malinowski, não existe etnografia alguma: o deslocamento, a viagem. Enfim, tudo começa com um deslocamento ou viagem, mesmo que nos tempos atuais o “corpo” do antropólogo não precise sair do lugar, ou mesmo fazer uma grande viagem.

***

Para dar início a esta discussão, já que pretendo voltar a ela inúmeras vezes, devo dizer que o meu problema etnográfico começou exatamente no momento em que constatei que o meu corpo orgânico, biológico, não era mais suficiente para ir até “lá” onde deveria fazer a minha observação participante. Mais ainda, no momento seguinte após fazer meu primeiro login quando constatei também que não era somente “eu” quem veria as coisas, ou andaria naqueles “lugares”, mesmo que em todos os momentos “eu” estivesse junto, por perto, testemunhando e participando de tudo.

Não se trata de uma conversa de doido, mas eu penso que não teremos uma antropologia da cibercultura, enquanto não realizarmos os devidos estranhamentos e levarmos em conta estes detalhes sobre a natureza das interfaces e do(s) “corpo/corpos” e/ou suporte(s) necessário(s), através dos quais o antropólogo realiza sua pesquisa de campo no ciberespaço. Estou convencida de que não poderemos descartar facilmente esta discussão, pois é ela que emprestará alguma singuralidade às nossas observações e interpretações a respeito desses fenômenos.

Mas se é assim, por que então citar Malinowski? Não é meu objetivo afirmar uma "autoridade etnográfica", mas discutir melhor os termos em que a etnografia dos/nos mundos virtuais se afasta do modelo que ainda sustenta as representações do senso comum acerca do ofício do antropólogo. É verdade que na maior parte das minhas imersões eu estive sozinha, rodeada apenas pelo meu equipamento, no caso, um computador e toda a parafernália que o cerca, além do fato de muitas vezes ter observado minha avatar “cair” em uma “praia tropical”.

Quero dizer com isso que houve deslocamento sim, porém, a qualidade da experiência deste deslocamento é/foi diferente daquela narrada por Malinowski e não aparece descrita em boa parte das narrativas feitas por meus colegas. Ela exigiu algo de mim que a literatura antropológica não tem discutido muito ainda. No meu caso tive de recorrer à literatura, muito embora sabendo que as narrativas ficcionais não podem ser confundidas com referências teóricas.

domingo, 27 de setembro de 2009

Abertura

O blog destina-se às minhas reflexões sobre o Second Life, onde estive durante mais de dois anos na condição de residente, mas também como pesquisadora da área de antropologia. Em todo este período, ao mesmo tempo em que procurei registrar o modo de vida daqueles que se propunham a ter uma “segunda vida” observei também com atenção as diferentes possibilidades de usos que o programa permite, desde um ambiente de sociabilidade, consumo, lazer, trabalho, até um lugar onde se desenvolvem atividades e experiências com arte e cultura, pesquisa científica e educação em geral. Este olhar abrangente permitiu-me desenvolver uma perspectiva própria, ou seja, construir um “ponto de vista nativo”, porém muito particular acerca dos inúmeros problemas que o Second Life levanta para os estudiosos da cibercultura.

Assim sendo, a idéia de fazer este blog não surgiu apenas da vontade de expor minhas experiências no melhor estilo fan culture, mas da necessidade mesmo de estabelecer um diálogo com a teoria antropológica e sociológica, a fim de restituir os fatos observados à sua condição de fenômenos sócio-culturais que são, nem mais e nem menos do que isso. O blog tem, portanto, este duplo caráter, o de ser ao mesmo tempo uma narrativa e um exorcismo teórico-metodológico de uma experiência etnográfica, como parte mesma desta experiência.

Dessa forma, as postagens serão feitas na tentativa de contemplar e conjugar basicamente duas linhas de interesse: a primeira diz respeito ao trabalho de campo propriamente dito, aos problemas que ele levanta e como afetam o pesquisador, um tema sempre caro aos antropólogos, desde que Malinowski chegou àquela praia distante no arquipélago das Trobriands; a segunda refere-se aos autores, textos, livros que li e venho lendo desde então para melhor compreender e dialogar com este mundo e seus habitantes. Para aqueles que sabem que não se fazem omeletes sem quebrar os ovos fica aqui, portanto, um convite especial para acompanharem este blog. Até breve!